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......@@ -1374,3 +1374,340 @@ desagradáveis mencionadas na edição anterior ou mesmo em manuais de outras
deliberadamente produzidos como material de leitura para crianças. Mas esta é
exatamente a razão por que nosso próprio padrão, incluindo nossa atitude em
relação às crianças, deve ser compreendido como algo que evoluiu.
### Constituição psíquisa: "a conspiração do silêncio"
Vemos, mais uma vez, como é importante para a compreensão de uma constituição
psíquica mais antiga, e de nossa própria, observar o aumento dessa distância, a
formação gradual de uma área segregada especial na qual as pessoas vêm, aos
poucos, a passar os primeiros doze, quinze e agora quase vinte anos de sua
vida. O desenvolvimento biológico humano em tempos mais antigos não tomou um
curso diferente do de hoje. Só com relação a essa mudança social podemos
compreender melhor todos os problemas de “crescer” como se apresentam hoje e,
com eles, os “resíduos infantis” na estrutura de personalidade de pessoas
crescidas (adultos). A diferença mais pronunciada entre as roupas de crianças e
adultos em nosso tempo é apenas uma expressão particularmente visível desse
fato. E, também essa diferença era mínima no tempo de Erasmo e durante um longo
período depois.
[...]
Entre a maneira de falar sobre relações sexuais representada por Erasmo e a
representada aqui por Von Raumer, é visível uma curva de civilização semelhante
à mostrada em mais detalhe na manifestação de outros impulsos. No processo
civilizador, a sexualidade, também, é cada vez mais transferida para trás da
cena da vida social e isolada em um enclave particular, a família nuclear. De
maneira idêntica, as relações entre os sexos são segregadas, colocadas atrás de
paredes da consciência.
[...]
Uma vez que no curso do processo civilizador o impulso sexual, como tantos
outros, está sujeito a controle e transformação cada vez mais rigorosos, muda o
problema que ele coloca. A pressão aplicada sobre adultos para privatizar todos
os seus impulsos (em especial, os sexuais), a “conspiração de silêncio”, as
restrições socialmente geradas à fala, o caráter emocionalmente carregado da
maioria das palavras relativas a ardores sexuais, tudo isto constrói uma grossa
parede de sigilo em volta do adolescente. O que torna o esclarecimento sexual
tão difícil — a derrubada desse muro, que um dia será necessário — não é só a
necessidade de fazer o adolescente conformar-se ao mesmo padrão de controle de
instintos e de domínio como o adulto. É, acima de tudo, a estrutura de
personalidade dos próprios adultos que torna difícil falar sobre essas coisas
secretas.
[...]
À vista de tudo isso, torna-se claro como deve ser colocada a questão da
infância. Os problemas psicológicos de indivíduos que crescem não podem ser
compreendidos se forem considerados como se desenvolvendo uniformemente em
todas as épocas históricas. Os problemas relativos à consciência e impulsos
instintivos da criança variam com a natureza das relações entre ela e os
adultos. Essas relações têm em todas as sociedades uma forma específica
correspondente às peculiaridades de sua estrutura. [...] Por isso
mesmo, os problemas decorrentes da adaptação e modelação de adolescentes ao
padrão dos adultos — por exemplo, os problemas específicos da puberdade em
nossa sociedade civilizada — só podem ser compreendidos em relação à fase
histórica, à estrutura da sociedade como um todo, que exige e mantém esse
padrão de comportamento adulto e esta forma especial de relacionamento entre
adultos e crianças.
### Relação civilizacional tendencial entre ganhos de liberdade exterior e aumento de coerção interior
Há evidência de sobra de que, nessa aristocracia de corte, a restrição a
relações sexuais ao casamento era frequentemente considerada como burguesa e
socialmente descabida. Não obstante, tudo isto dá uma ideia de como um tipo
específico de liberdade corresponde diretamente a formas e estágios
particulares de interdependência social entre seres humanos.
As formas linguísticas não dinâmicas, às quais continuamos presos, opõem
liberdade a coerção como se fossem céu e inferno. A curto prazo, esse
raciocínio em opostos absolutos muitas vezes se mostra razoavelmente adequado.
Para quem está na prisão, o mundo do outro lado das grades é um mundo de
liberdade. Mas, examinando o assunto com mais cuidado, não há, ao contrário do
que sugerem antíteses como essas, uma suposta liberdade “absoluta”, se por ela
entendemos total independência e ausência de qualquer coação social. O que há é
libertação, de uma forma de restrição opressiva ou intolerável para outra,
menos pesada. Dessa maneira, o processo civilizador, a despeito da
transformação e aumento das limitações que impõe às emoções, é acompanhado
permanentemente por tipos de libertação dos mais diversos. A forma de casamento
nas cortes absolutistas, simbolizada pela igual disposição de salas de estar e
quartos de dormir para homens e mulheres nas mansões da aristocracia de corte,
constitui um dos muitos exemplos desta situação. A mulher era mais livre de
restrições externas do que na sociedade feudal. Mas a coação interior que ela
era obrigada a impor a si mesma de acordo com a forma de integração e com o
código de comportamento em vigor na sociedade de corte, que se originavam ambos
dos mesmos aspectos estruturais dessa sociedade que engendraram sua
“liberação”, havia aumentado para ela e para os homens em confronto com a
sociedade cavaleirosa.
[...]
Burgueses e burguesas libertaram-se das limitações externas a que estiveram
sujeitos como pessoas de segunda classe, na hierarquia dos estamentos. Aumentou
o entrelaçamento de comércio e dinheiro, cujo crescimento lhes deu o poder
social necessário para se libertarem. Mas, neste aspecto, as limitações sociais
do indivíduo também são mais fortes do que antes. [...] O motivo por que o
trabalho como ocupação, que com a ascensão da burguesia se tornou estilo geral
de vida, deveria exigir uma disciplina particularmente rigorosa da sexualidade
é uma questão independente; as ligações entre a estrutura da personalidade e a
social no século XIX não cabem aqui. Não obstante, para os padrões da sociedade
burguesa, o controle da sexualidade e a forma de casamento vigentes na
sociedade de corte eram extremamente débeis. [...] Mas ambas as quebras de
padrão têm, nessa época, de ser inteiramente excluídas da vida social oficial.
Ao contrário do que acontece na corte, devem ser rigorosamente confinadas atrás
da cena, banidas para o reino do segredo. Este é apenas um dos muitos exemplos
do aumento da reserva e do autocontrole que o indivíduo então se impõe.
10. O processo civilizador não segue uma linha reta. A tendência geral da
mudança pode ser identificada, como aqui fizemos. Em escala menor, observamos
os mais diversos movimentos que se entrecruzam, mudanças e surtos nesta ou
naquela direção. Mas se estudamos o movimento da perspectiva de grandes
períodos de tempo, vemos claramente que diminuem as compulsões originadas
diretamente na ameaça do uso das armas e da força física, e que as formas de
dependência que levam à regulação dos efeitos, sob a forma de autocontrole,
gradualmente aumentam. Esta mudança desponta em seu aspecto mais retilíneo se
observamos os homens da classe alta do tempo — isto é, a classe composta
inicialmente de guerreiros ou cavaleiros, em seguida de cortesãos, e finalmente
de profissionais burgueses. Se analisamos o tecido de muitas camadas do
desenvolvimento histórico, contudo, verificamos que o movimento é infinitamente
mais complexo. Em todas as fases ocorrem numerosas flutuações, frequentes
avanços ou recuos dos controles internos e externos. O estudo dessas
flutuações, particularmente das mais próximas de nós no tempo, pode facilmente
obscurecer a tendência geral. Uma delas está presente ainda hoje na memória de
todos: no período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, em comparação com o
período anterior à guerra, parece ter ocorrido uma “relaxação da moral”. Certo
número de limitações impostas ao comportamento antes da guerra debilitou-se ou
desapareceu inteiramente. Muitas coisas antes proibidas passaram a ser
permitidas. Visto bem de perto, o movimento parece estar ocorrendo na direção
oposta à demonstrada aqui, a levar a uma relação dos controles impostos ao
indivíduo pela vida social. Apurando-se o exame, porém, não é difícil notar que
isto é apenas uma recessão muito ligeira, uma das flutuações que constantemente
ocorrem na complexidade do movimento histórico, em cada fase do processo total.
Um dos exemplos no particular é o das roupas de banho. No século XIX, cairia no
ostracismo social a mulher que usasse em público os costumes de banho ora
comuns. Mas essa mudança, e com ela toda a difusão do esporte entre ambos os
sexos, pressupõe um padrão muito elevado de controle de impulsos. Só numa
sociedade na qual um alto grau de controle é esperado como normal, e na qual as
mulheres estão, da mesma forma que os homens, absolutamente seguras de que cada
indivíduo é limitado pelo autocontrole e por um rigoroso código de etiqueta,
podiam surgir trajos de banho e esporte com esse relativo grau de liberdade. É
uma relaxação que ocorre dentro do contexto de um padrão “civilizado”
particular de comportamento, envolvendo um alto grau de limitação automática e
de transformação de emoções, condicionados para se tornarem hábitos.
[...]
O mecanismo de condicionamento, contudo, pouco difere do usado em épocas
anteriores. Isto porque não implica uma supervisão mais rigorosa da tarefa, ou
planejamento mais exato que leve em conta as circunstâncias especiais da
criança, mas é efetuado, principalmente e por meios automáticos e, até certo
ponto, por reflexos.
[...]
12. A tendência do processo civilizador a tornar mais íntimas todas as funções
corporais, a encerrá-las em enclaves particulares, a colocá-las “atrás de
portas fechadas”, produz diversas consequências. Uma das mais importantes, já
observada em conexão com várias outras formas de impulsos, notamos com especial
clareza no desenvolvimento de limitações civilizadoras à sexualidade. É a
peculiar divisão dentro do homem, que se acentua na mesma medida em que os
aspectos da vida humana que podem ser exibidos na vida social são separados dos
que não podem, e que devem permanecer “privados” ou “secretos”. [...]
Em outras palavras, com o avanço da civilização a vida dos seres humanos fica
cada vez mais dividida entre uma esfera íntima e uma pública, entre
comportamento secreto e público. E esta divisão é aceita como tão natural,
torna-se um hábito tão compulsivo, que mal é percebida pela consciência.
[...]
Impulsos que prometem e tabus e proibições que negam prazeres, sentimentos
socialmente gerados de vergonha e repugnância, entram em luta no interior do
indivíduo. Este, conforme já apontamos, é o estado de coisas que Freud tenta
descrever através de conceitos como “superego” e “inconsciente” ou, como se diz
não sem razões na fala diária, como “subconsciente”. Mas, como quer que seja
expresso, o código social de conduta grava-se de tal forma no ser humano, desta
ou daquela forma, que se torna elemento constituinte do indivíduo. E este
elemento, o superego, tal como a estrutura da personalidade do indivíduo como
um todo, necessária e constantemente muda com o código social de comportamento
e a estrutura da sociedade. A acentuada divisão do “ego”, ou consciência,
característica do homem em nossa fase de civilização, que encontra expressão em
termos como “superego” e “inconsciente”, corresponde à cisão específica no
comportamento que a sociedade civilizada exige de seus membros. É igual ao grau
de regulamentação e restrição imposto à expressão de necessidades profundas e
impulsos. Tendências nessa direção podem se desenvolver sob qualquer forma na
sociedade humana, mesmo naquelas que chamamos de “primitivas”. Mas a força
adquirida em sociedades como a nossa por essa diferenciação, e a forma como ela
aparece, são reflexo de um desenvolvimento histórico particular, são resultado
de um processo civilizador.
É isso o que temos em mente quando nos referimos aqui à constante
correspondência entre a estrutura social e a estrutura da personalidade, do ser
individual.
### A "forma socialmente impressa" da agressividade
Como todos os demais instintos, ela é condicionada, mesmo em ações visivelmente
militares, pelo estado adiantado da divisão de funções, e pelo decorrente
aumento na dependência dos indivíduos entre si e face ao aparato técnico. É
confinada e domada por inumeráveis regras e proibições, que se transformaram em
autolimitações. Foi tão transformada, “refinada”, “civilizada” como todas as
outras forma de prazer, e sua violência imediata e descontrolada aparece apenas
em sonhos ou em explosões isoladas que explicamos como patológicas.
[...]
Deixando de lado uma pequena elite, o saque, a rapinagem, e o assassinato eram
práticas comuns da sociedade guerreira dessa época, conforme anotou Luchaire, o
historiador da sociedade francesa do século XIII. Há pouca evidência de que as
coisas fossem diferentes em outros países ou nos séculos que se seguiram.
Explosões de crueldade não excluíam ninguém da vida social. Seus autores não
eram banidos. O prazer de matar e torturar era socialmente permitido. Até certo
ponto, a própria estrutura social impelia seus membros nessa direção, fazendo
com que parecesse necessário e praticamente vantajoso comportar-se dessa
maneira.
O que, por exemplo, devia ser feito com prisioneiros? Era pouco o dinheiro
nessa sociedade. Se os prisioneiros podiam pagar e, além disso, eram membros da
mesma classe do vitorioso, exercia-se certo grau de contenção. Mas, os outros?
Conservá-los vivos significava alimentá-los. Devolvê-los significava aumentar a
riqueza e o poder de luta do inimigo. Isto porque os súditos (isto é, os que
trabalhavam, serviam e lutavam) faziam parte da riqueza da classe governante
daquele tempo. De modo que os prisioneiros eram mortos ou devolvidos tão
mutilados que não prestavam mais para serviço de guerra ou trabalho. O mesmo se
aplicava à destruição de campos plantados, entupimento de poços e abate de
árvores. Em uma sociedade predominantemente agrária, na qual as posses fixas
representavam a maior parte da propriedade, isto também servia para enfraquecer
o inimigo. A emotividade mais forte do comportamento era até certo ponto
socialmente necessária. As pessoas se comportavam de maneira socialmente útil e
tinham prazer nisso.
[...]
Não que as pessoas andassem sempre de cara feia, arcos retesados e postura
marcial como símbolo claro e visível de sua perícia belicosa. Muito pelo
contrário, em um momento estão pilheriando, no outro trocam zombarias, uma
palavra leva a outra e, de repente, emergindo do riso se veem no meio de uma
rixa feroz. Grande parte do que nos parece contraditório — a intensidade da
religiosidade, o grande medo do inferno, o sentimento de culpa, as penitências,
as explosões desmedidas de alegria e divertimento, a súbita explosão de força
incontrolável do ódio e da beligerância — tudo isso, tal como a rápida mudança
de estados de ânimo, é na realidade sintoma da mesma estrutura social e de
personalidade. Os instintos, as emoções, eram liberados de forma mais livre,
mais direta, mais aberta, do que mais tarde. Só para nós, para quem tudo é mais
controlado, moderado, calculado, em quem tabus sociais mergulham muito mais
fundamente no tecido da vida instintiva como forma de autocontrole, é que esta
visível intensidade de religiosidade, beligerância ou crueldade parece
contraditória. A religião, a crença na onipotência punitiva ou premiadora de
Deus nunca teve em si um efeito “civilizador” ou de controle de emoções. Muito
ao contrário, a religião é sempre exatamente tão “civilizada” como a sociedade
ou classe que a sustenta. E porque as emoções são expressas nessa época de uma
maneira que, em nosso mundo, é geralmente observada em crianças, chamamos de
“infantis” essas manifestações e formas de comportamento.
[...]
Quem quer que não amasse ou odiasse ao máximo nessa sociedade, quem quer que
não soubesse defender sua posição no jogo das paixões, podia entrar para um
mosteiro, para todos os efeitos. Na vida mundana ele estava tão perdido como,
inversamente, estaria numa sociedade posterior, e particularmente na corte, o
homem que não pudesse controlá-las, não pudesse esconder e “civilizar” suas
emoções.
[...]
Nessa sociedade não havia poder central suficientemente forte para obrigar as
pessoas a se controlarem. [...] Conforme veremos no detalhe mais adiante, a
reserva e a “consideração mútua” entre as pessoas aumentavam, inicialmente na
vida social diária comum. E a descarga de emoções em ataque físico se limitava
a certos enclaves temporais e espaciais. Uma vez tivesse o monopólio da força
física passado a autoridades centrais, nem todos os homens fortes podiam se dar
ao prazer do ataque físico. Isto passava nesse instante a ser reservado àqueles
poucos legitimados pela autoridade central (como, por exemplo, a polícia contra
criminosos) e a números maiores apenas em tempos excepcionais de guerra ou
revolução, na luta socialmente legitimada contra inimigos internos ou externos.
Mas até mesmo esses enclaves temporais ou espaciais na sociedade civilizada,
nos quais se deu maior liberdade à beligerância — acima de tudo, nas guerras
entre nações — tornaram-se mais impessoais e levavam cada vez menos a uma
descarga emocional marcada pelo imediatismo e intensidade da fase medieval.
[...] Ainda assim, isso poderia acontecer com maior rapidez do que poderíamos supor,
não tivesse o combate físico direto entre um homem e seu odiado adversário
cedido lugar a uma luta mecanizada que exige rigoroso controle dos afetos.
Mesmo nas guerras do mundo civilizado, o indivíduo não pode mais dar rédea
livre ao prazer provocado pela vista do inimigo, mas lutar, pouco importando
como se sinta, obedecendo ao comando de chefes invisíveis, ou apenas
indiretamente visíveis, e contra inimigos frequentemente invisíveis ou só
indiretamente visíveis. E foi preciso uma imensa perturbação social, aguçada
por propaganda habilmente concertada, para reacender e legitimar em grandes
massas de pessoas os instintos socialmente proibidos, o prazer de matar e a
destruição, que foram eliminados do cotidiano da vida civilizada.
[...]
Para dar um exemplo, a beligerância e a agressão encontram expressão
socialmente permitida nos jogos esportivos. [...] Esse aspecto determina em
parte a maneira como se escrevem livros e peças de teatro e influencia
decisivamente o papel do cinema em nosso mundo.
Essa transformação do que, inicialmente, se exprimia em uma manifestação ativa
e frequentemente agressiva, no prazer passivo e mais controlado de assistir
(isto é, em mero prazer do olho), já é iniciada na educação e nas regras de
condicionamento dos jovens.
Na edição de 1774 da Civilité, de La Salle, lemos (p.23): “Crianças gostam de
tocar em roupas e em outras coisas que lhes agradam as mãos. Esta ânsia deve
ser corrigida e devem ser ensinadas a tocar o que veem apenas com os olhos.”
Hoje essa regra é aceita quase como natural. É altamente característico do
homem civilizado que seja proibido por autocontrole socialmente inculcado de,
espontaneamente, tocar naquilo que deseja, ama, ou odeia. Toda a modelação de
seus gestos — pouco importando como o padrão possa diferir entre as nações
ocidentais no tocante a detalhes — é decisivamente influenciada por essa
necessidade. Já mostramos páginas atrás como o emprego do sentido do olfato, a
tendência de cheirar o alimento ou outras coisas, veio a ser restringido como
algo animal. Aqui temos uma das interconexões através da qual um diferente
órgão dos sentidos, o olho, assume importância muito específica na sociedade
civilizada. De maneira semelhante à da orelha, e talvez ainda mais, o olho se
torna um mediador do prazer precisamente porque a satisfação direta do desejo
pelo prazer foi circunscrita por grande número de barreiras e proibições.
[...]
Todos os que caírem fora dos limites desse padrão social são considerados
“anormais”. Por conseguinte, alguém que desejasse gratificar seu prazer à
maneira do século XVI, queimando gatos, seria hoje considerado “anormal”
simplesmente porque o condicionamento normal em nosso estágio de civilização
restringe a manifestação de prazer nesses atos mediante uma ansiedade instilada
sob a forma de autocontrole.
Neste caso, obviamente, opera o mesmo tipo de mecanismo psicológico com base no
qual ocorreu a mudança a longo prazo da personalidade: manifestações
socialmente indesejáveis de instintos e prazer são ameaçadas e punidas com
medidas que geram e reforçam desagrado e ansiedade. Na repetição constante do
desagrado despertado pelas ameaças, e na habituação a esse ritmo, o desagrado
dominante é compulsoriamente associado até mesmo a comportamentos que, na sua
origem, possam ser agradáveis. Dessa maneira, o desagrado e a ansiedade
socialmente despertados — hoje representados, embora nem sempre nem
exclusivamente, pelos pais — lutam com desejos ocultos. O que foi mostrado
aqui, de diferentes ângulos, como um avanço nas fronteiras da vergonha, do
patamar da repugnância, dos padrões das emoções, provavelmente foi posto em
movimento por mecanismos como esses.
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