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From: Silvio Rhatto <rhatto@riseup.net>
Date: Sun, 17 Jun 2018 16:38:16 -0300
Subject: [PATCH] Updates books/sociedade/processo-civilizador

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@@ -1374,3 +1374,340 @@ desagradáveis mencionadas na edição anterior ou mesmo em manuais de outras
     deliberadamente produzidos como material de leitura para crianças. Mas esta é
     exatamente a razão por que nosso próprio padrão, incluindo nossa atitude em
     relação às crianças, deve ser compreendido como algo que evoluiu.
+
+### Constituição psíquisa: "a conspiração do silêncio"
+
+    Vemos, mais uma vez, como é importante para a compreensão de uma constituição
+    psíquica mais antiga, e de nossa própria, observar o aumento dessa distância, a
+    formação gradual de uma área segregada especial na qual as pessoas vêm, aos
+    poucos, a passar os primeiros doze, quinze e agora quase vinte anos de sua
+    vida. O desenvolvimento biológico humano em tempos mais antigos não tomou um
+    curso diferente do de hoje. Só com relação a essa mudança social podemos
+    compreender melhor todos os problemas de “crescer” como se apresentam hoje e,
+    com eles, os “resíduos infantis” na estrutura de personalidade de pessoas
+    crescidas (adultos). A diferença mais pronunciada entre as roupas de crianças e
+    adultos em nosso tempo é apenas uma expressão particularmente visível desse
+    fato. E, também essa diferença era mínima no tempo de Erasmo e durante um longo
+    período depois.
+
+    [...]
+
+    Entre a maneira de falar sobre relações sexuais representada por Erasmo e a
+    representada aqui por Von Raumer, é visível uma curva de civilização semelhante
+    à mostrada em mais detalhe na manifestação de outros impulsos. No processo
+    civilizador, a sexualidade, também, é cada vez mais transferida para trás da
+    cena da vida social e isolada em um enclave particular, a família nuclear. De
+    maneira idêntica, as relações entre os sexos são segregadas, colocadas atrás de
+    paredes da consciência.
+
+    [...]
+
+    Uma vez que no curso do processo civilizador o impulso sexual, como tantos
+    outros, está sujeito a controle e transformação cada vez mais rigorosos, muda o
+    problema que ele coloca. A pressão aplicada sobre adultos para privatizar todos
+    os seus impulsos (em especial, os sexuais), a “conspiração de silêncio”, as
+    restrições socialmente geradas à fala, o caráter emocionalmente carregado da
+    maioria das palavras relativas a ardores sexuais, tudo isto constrói uma grossa
+    parede de sigilo em volta do adolescente. O que torna o esclarecimento sexual
+    tão difícil — a derrubada desse muro, que um dia será necessário — não é só a
+    necessidade de fazer o adolescente conformar-se ao mesmo padrão de controle de
+    instintos e de domínio como o adulto. É, acima de tudo, a estrutura de
+    personalidade dos próprios adultos que torna difícil falar sobre essas coisas
+    secretas.
+
+    [...]
+
+    À vista de tudo isso, torna-se claro como deve ser colocada a questão da
+    infância. Os problemas psicológicos de indivíduos que crescem não podem ser
+    compreendidos se forem considerados como se desenvolvendo uniformemente em
+    todas as épocas históricas. Os problemas relativos à consciência e impulsos
+    instintivos da criança variam com a natureza das relações entre ela e os
+    adultos. Essas relações têm em todas as sociedades uma forma específica
+    correspondente às peculiaridades de sua estrutura. [...] Por isso
+    mesmo, os problemas decorrentes da adaptação e modelação de adolescentes ao
+    padrão dos adultos — por exemplo, os problemas específicos da puberdade em
+    nossa sociedade civilizada — só podem ser compreendidos em relação à fase
+    histórica, à estrutura da sociedade como um todo, que exige e mantém esse
+    padrão de comportamento adulto e esta forma especial de relacionamento entre
+    adultos e crianças.
+
+### Relação civilizacional tendencial entre ganhos de liberdade exterior e aumento de coerção interior
+
+    Há evidência de sobra de que, nessa aristocracia de corte, a restrição a
+    relações sexuais ao casamento era frequentemente considerada como burguesa e
+    socialmente descabida. Não obstante, tudo isto dá uma ideia de como um tipo
+    específico de liberdade corresponde diretamente a formas e estágios
+    particulares de interdependência social entre seres humanos.
+
+    As formas linguísticas não dinâmicas, às quais continuamos presos, opõem
+    liberdade a coerção como se fossem céu e inferno. A curto prazo, esse
+    raciocínio em opostos absolutos muitas vezes se mostra razoavelmente adequado.
+    Para quem está na prisão, o mundo do outro lado das grades é um mundo de
+    liberdade. Mas, examinando o assunto com mais cuidado, não há, ao contrário do
+    que sugerem antíteses como essas, uma suposta liberdade “absoluta”, se por ela
+    entendemos total independência e ausência de qualquer coação social. O que há é
+    libertação, de uma forma de restrição opressiva ou intolerável para outra,
+    menos pesada. Dessa maneira, o processo civilizador, a despeito da
+    transformação e aumento das limitações que impõe às emoções, é acompanhado
+    permanentemente por tipos de libertação dos mais diversos. A forma de casamento
+    nas cortes absolutistas, simbolizada pela igual disposição de salas de estar e
+    quartos de dormir para homens e mulheres nas mansões da aristocracia de corte,
+    constitui um dos muitos exemplos desta situação. A mulher era mais livre de
+    restrições externas do que na sociedade feudal. Mas a coação interior que ela
+    era obrigada a impor a si mesma de acordo com a forma de integração e com o
+    código de comportamento em vigor na sociedade de corte, que se originavam ambos
+    dos mesmos aspectos estruturais dessa sociedade que engendraram sua
+    “liberação”, havia aumentado para ela e para os homens em confronto com a
+    sociedade cavaleirosa.
+
+    [...]
+
+    Burgueses e burguesas libertaram-se das limitações externas a que estiveram
+    sujeitos como pessoas de segunda classe, na hierarquia dos estamentos. Aumentou
+    o entrelaçamento de comércio e dinheiro, cujo crescimento lhes deu o poder
+    social necessário para se libertarem. Mas, neste aspecto, as limitações sociais
+    do indivíduo também são mais fortes do que antes. [...] O motivo por que o
+    trabalho como ocupação, que com a ascensão da burguesia se tornou estilo geral
+    de vida, deveria exigir uma disciplina particularmente rigorosa da sexualidade
+    é uma questão independente; as ligações entre a estrutura da personalidade e a
+    social no século XIX não cabem aqui. Não obstante, para os padrões da sociedade
+    burguesa, o controle da sexualidade e a forma de casamento vigentes na
+    sociedade de corte eram extremamente débeis. [...] Mas ambas as quebras de
+    padrão têm, nessa época, de ser inteiramente excluídas da vida social oficial.
+    Ao contrário do que acontece na corte, devem ser rigorosamente confinadas atrás
+    da cena, banidas para o reino do segredo. Este é apenas um dos muitos exemplos
+    do aumento da reserva e do autocontrole que o indivíduo então se impõe.
+
+    10. O processo civilizador não segue uma linha reta. A tendência geral da
+    mudança pode ser identificada, como aqui fizemos. Em escala menor, observamos
+    os mais diversos movimentos que se entrecruzam, mudanças e surtos nesta ou
+    naquela direção. Mas se estudamos o movimento da perspectiva de grandes
+    períodos de tempo, vemos claramente que diminuem as compulsões originadas
+    diretamente na ameaça do uso das armas e da força física, e que as formas de
+    dependência que levam à regulação dos efeitos, sob a forma de autocontrole,
+    gradualmente aumentam. Esta mudança desponta em seu aspecto mais retilíneo se
+    observamos os homens da classe alta do tempo — isto é, a classe composta
+    inicialmente de guerreiros ou cavaleiros, em seguida de cortesãos, e finalmente
+    de profissionais burgueses. Se analisamos o tecido de muitas camadas do
+    desenvolvimento histórico, contudo, verificamos que o movimento é infinitamente
+    mais complexo. Em todas as fases ocorrem numerosas flutuações, frequentes
+    avanços ou recuos dos controles internos e externos. O estudo dessas
+    flutuações, particularmente das mais próximas de nós no tempo, pode facilmente
+    obscurecer a tendência geral. Uma delas está presente ainda hoje na memória de
+    todos: no período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, em comparação com o
+    período anterior à guerra, parece ter ocorrido uma “relaxação da moral”. Certo
+    número de limitações impostas ao comportamento antes da guerra debilitou-se ou
+    desapareceu inteiramente. Muitas coisas antes proibidas passaram a ser
+    permitidas. Visto bem de perto, o movimento parece estar ocorrendo na direção
+    oposta à demonstrada aqui, a levar a uma relação dos controles impostos ao
+    indivíduo pela vida social. Apurando-se o exame, porém, não é difícil notar que
+    isto é apenas uma recessão muito ligeira, uma das flutuações que constantemente
+    ocorrem na complexidade do movimento histórico, em cada fase do processo total.
+
+    Um dos exemplos no particular é o das roupas de banho. No século XIX, cairia no
+    ostracismo social a mulher que usasse em público os costumes de banho ora
+    comuns. Mas essa mudança, e com ela toda a difusão do esporte entre ambos os
+    sexos, pressupõe um padrão muito elevado de controle de impulsos. Só numa
+    sociedade na qual um alto grau de controle é esperado como normal, e na qual as
+    mulheres estão, da mesma forma que os homens, absolutamente seguras de que cada
+    indivíduo é limitado pelo autocontrole e por um rigoroso código de etiqueta,
+    podiam surgir trajos de banho e esporte com esse relativo grau de liberdade. É
+    uma relaxação que ocorre dentro do contexto de um padrão “civilizado”
+    particular de comportamento, envolvendo um alto grau de limitação automática e
+    de transformação de emoções, condicionados para se tornarem hábitos.
+
+    [...]
+
+    O mecanismo de condicionamento, contudo, pouco difere do usado em épocas
+    anteriores. Isto porque não implica uma supervisão mais rigorosa da tarefa, ou
+    planejamento mais exato que leve em conta as circunstâncias especiais da
+    criança, mas é efetuado, principalmente e por meios automáticos e, até certo
+    ponto, por reflexos.
+
+    [...]
+
+    12. A tendência do processo civilizador a tornar mais íntimas todas as funções
+    corporais, a encerrá-las em enclaves particulares, a colocá-las “atrás de
+    portas fechadas”, produz diversas consequências. Uma das mais importantes, já
+    observada em conexão com várias outras formas de impulsos, notamos com especial
+    clareza no desenvolvimento de limitações civilizadoras à sexualidade. É a
+    peculiar divisão dentro do homem, que se acentua na mesma medida em que os
+    aspectos da vida humana que podem ser exibidos na vida social são separados dos
+    que não podem, e que devem permanecer “privados” ou “secretos”. [...]
+    Em outras palavras, com o avanço da civilização a vida dos seres humanos fica
+    cada vez mais dividida entre uma esfera íntima e uma pública, entre
+    comportamento secreto e público. E esta divisão é aceita como tão natural,
+    torna-se um hábito tão compulsivo, que mal é percebida pela consciência.
+
+    [...]
+
+    Impulsos que prometem e tabus e proibições que negam prazeres, sentimentos
+    socialmente gerados de vergonha e repugnância, entram em luta no interior do
+    indivíduo. Este, conforme já apontamos, é o estado de coisas que Freud tenta
+    descrever através de conceitos como “superego” e “inconsciente” ou, como se diz
+    não sem razões na fala diária, como “subconsciente”. Mas, como quer que seja
+    expresso, o código social de conduta grava-se de tal forma no ser humano, desta
+    ou daquela forma, que se torna elemento constituinte do indivíduo. E este
+    elemento, o superego, tal como a estrutura da personalidade do indivíduo como
+    um todo, necessária e constantemente muda com o código social de comportamento
+    e a estrutura da sociedade. A acentuada divisão do “ego”, ou consciência,
+    característica do homem em nossa fase de civilização, que encontra expressão em
+    termos como “superego” e “inconsciente”, corresponde à cisão específica no
+    comportamento que a sociedade civilizada exige de seus membros. É igual ao grau
+    de regulamentação e restrição imposto à expressão de necessidades profundas e
+    impulsos. Tendências nessa direção podem se desenvolver sob qualquer forma na
+    sociedade humana, mesmo naquelas que chamamos de “primitivas”. Mas a força
+    adquirida em sociedades como a nossa por essa diferenciação, e a forma como ela
+    aparece, são reflexo de um desenvolvimento histórico particular, são resultado
+    de um processo civilizador.
+
+    É isso o que temos em mente quando nos referimos aqui à constante
+    correspondência entre a estrutura social e a estrutura da personalidade, do ser
+    individual.
+
+### A "forma socialmente impressa" da agressividade
+
+    Como todos os demais instintos, ela é condicionada, mesmo em ações visivelmente
+    militares, pelo estado adiantado da divisão de funções, e pelo decorrente
+    aumento na dependência dos indivíduos entre si e face ao aparato técnico. É
+    confinada e domada por inumeráveis regras e proibições, que se transformaram em
+    autolimitações. Foi tão transformada, “refinada”, “civilizada” como todas as
+    outras forma de prazer, e sua violência imediata e descontrolada aparece apenas
+    em sonhos ou em explosões isoladas que explicamos como patológicas.
+
+    [...]
+
+    Deixando de lado uma pequena elite, o saque, a rapinagem, e o assassinato eram
+    práticas comuns da sociedade guerreira dessa época, conforme anotou Luchaire, o
+    historiador da sociedade francesa do século XIII. Há pouca evidência de que as
+    coisas fossem diferentes em outros países ou nos séculos que se seguiram.
+    Explosões de crueldade não excluíam ninguém da vida social. Seus autores não
+    eram banidos. O prazer de matar e torturar era socialmente permitido. Até certo
+    ponto, a própria estrutura social impelia seus membros nessa direção, fazendo
+    com que parecesse necessário e praticamente vantajoso comportar-se dessa
+    maneira.
+
+    O que, por exemplo, devia ser feito com prisioneiros? Era pouco o dinheiro
+    nessa sociedade. Se os prisioneiros podiam pagar e, além disso, eram membros da
+    mesma classe do vitorioso, exercia-se certo grau de contenção. Mas, os outros?
+    Conservá-los vivos significava alimentá-los. Devolvê-los significava aumentar a
+    riqueza e o poder de luta do inimigo. Isto porque os súditos (isto é, os que
+    trabalhavam, serviam e lutavam) faziam parte da riqueza da classe governante
+    daquele tempo. De modo que os prisioneiros eram mortos ou devolvidos tão
+    mutilados que não prestavam mais para serviço de guerra ou trabalho. O mesmo se
+    aplicava à destruição de campos plantados, entupimento de poços e abate de
+    árvores. Em uma sociedade predominantemente agrária, na qual as posses fixas
+    representavam a maior parte da propriedade, isto também servia para enfraquecer
+    o inimigo. A emotividade mais forte do comportamento era até certo ponto
+    socialmente necessária. As pessoas se comportavam de maneira socialmente útil e
+    tinham prazer nisso. 
+
+    [...]
+
+    Não que as pessoas andassem sempre de cara feia, arcos retesados e postura
+    marcial como símbolo claro e visível de sua perícia belicosa. Muito pelo
+    contrário, em um momento estão pilheriando, no outro trocam zombarias, uma
+    palavra leva a outra e, de repente, emergindo do riso se veem no meio de uma
+    rixa feroz. Grande parte do que nos parece contraditório — a intensidade da
+    religiosidade, o grande medo do inferno, o sentimento de culpa, as penitências,
+    as explosões desmedidas de alegria e divertimento, a súbita explosão de força
+    incontrolável do ódio e da beligerância — tudo isso, tal como a rápida mudança
+    de estados de ânimo, é na realidade sintoma da mesma estrutura social e de
+    personalidade. Os instintos, as emoções, eram liberados de forma mais livre,
+    mais direta, mais aberta, do que mais tarde. Só para nós, para quem tudo é mais
+    controlado, moderado, calculado, em quem tabus sociais mergulham muito mais
+    fundamente no tecido da vida instintiva como forma de autocontrole, é que esta
+    visível intensidade de religiosidade, beligerância ou crueldade parece
+    contraditória. A religião, a crença na onipotência punitiva ou premiadora de
+    Deus nunca teve em si um efeito “civilizador” ou de controle de emoções. Muito
+    ao contrário, a religião é sempre exatamente tão “civilizada” como a sociedade
+    ou classe que a sustenta. E porque as emoções são expressas nessa época de uma
+    maneira que, em nosso mundo, é geralmente observada em crianças, chamamos de
+    “infantis” essas manifestações e formas de comportamento.
+
+    [...]
+
+    Quem quer que não amasse ou odiasse ao máximo nessa sociedade, quem quer que
+    não soubesse defender sua posição no jogo das paixões, podia entrar para um
+    mosteiro, para todos os efeitos. Na vida mundana ele estava tão perdido como,
+    inversamente, estaria numa sociedade posterior, e particularmente na corte, o
+    homem que não pudesse controlá-las, não pudesse esconder e “civilizar” suas
+    emoções.
+
+    [...]
+
+    Nessa sociedade não havia poder central suficientemente forte para obrigar as
+    pessoas a se controlarem.  [...] Conforme veremos no detalhe mais adiante, a
+    reserva e a “consideração mútua” entre as pessoas aumentavam, inicialmente na
+    vida social diária comum. E a descarga de emoções em ataque físico se limitava
+    a certos enclaves temporais e espaciais. Uma vez tivesse o monopólio da força
+    física passado a autoridades centrais, nem todos os homens fortes podiam se dar
+    ao prazer do ataque físico. Isto passava nesse instante a ser reservado àqueles
+    poucos legitimados pela autoridade central (como, por exemplo, a polícia contra
+    criminosos) e a números maiores apenas em tempos excepcionais de guerra ou
+    revolução, na luta socialmente legitimada contra inimigos internos ou externos.
+
+    Mas até mesmo esses enclaves temporais ou espaciais na sociedade civilizada,
+    nos quais se deu maior liberdade à beligerância — acima de tudo, nas guerras
+    entre nações — tornaram-se mais impessoais e levavam cada vez menos a uma
+    descarga emocional marcada pelo imediatismo e intensidade da fase medieval.
+    [...] Ainda assim, isso poderia acontecer com maior rapidez do que poderíamos supor,
+    não tivesse o combate físico direto entre um homem e seu odiado adversário
+    cedido lugar a uma luta mecanizada que exige rigoroso controle dos afetos.
+    Mesmo nas guerras do mundo civilizado, o indivíduo não pode mais dar rédea
+    livre ao prazer provocado pela vista do inimigo, mas lutar, pouco importando
+    como se sinta, obedecendo ao comando de chefes invisíveis, ou apenas
+    indiretamente visíveis, e contra inimigos frequentemente invisíveis ou só
+    indiretamente visíveis. E foi preciso uma imensa perturbação social, aguçada
+    por propaganda habilmente concertada, para reacender e legitimar em grandes
+    massas de pessoas os instintos socialmente proibidos, o prazer de matar e a
+    destruição, que foram eliminados do cotidiano da vida civilizada.
+
+    [...]
+
+    Para dar um exemplo, a beligerância e a agressão encontram expressão
+    socialmente permitida nos jogos esportivos. [...] Esse aspecto determina em
+    parte a maneira como se escrevem livros e peças de teatro e influencia
+    decisivamente o papel do cinema em nosso mundo.
+    Essa transformação do que, inicialmente, se exprimia em uma manifestação ativa
+    e frequentemente agressiva, no prazer passivo e mais controlado de assistir
+    (isto é, em mero prazer do olho), já é iniciada na educação e nas regras de
+    condicionamento dos jovens.
+
+    Na edição de 1774 da Civilité, de La Salle, lemos (p.23): “Crianças gostam de
+    tocar em roupas e em outras coisas que lhes agradam as mãos. Esta ânsia deve
+    ser corrigida e devem ser ensinadas a tocar o que veem apenas com os olhos.”
+
+    Hoje essa regra é aceita quase como natural. É altamente característico do
+    homem civilizado que seja proibido por autocontrole socialmente inculcado de,
+    espontaneamente, tocar naquilo que deseja, ama, ou odeia. Toda a modelação de
+    seus gestos — pouco importando como o padrão possa diferir entre as nações
+    ocidentais no tocante a detalhes — é decisivamente influenciada por essa
+    necessidade. Já mostramos páginas atrás como o emprego do sentido do olfato, a
+    tendência de cheirar o alimento ou outras coisas, veio a ser restringido como
+    algo animal. Aqui temos uma das interconexões através da qual um diferente
+    órgão dos sentidos, o olho, assume importância muito específica na sociedade
+    civilizada. De maneira semelhante à da orelha, e talvez ainda mais, o olho se
+    torna um mediador do prazer precisamente porque a satisfação direta do desejo
+    pelo prazer foi circunscrita por grande número de barreiras e proibições.
+
+    [...]
+
+    Todos os que caírem fora dos limites desse padrão social são considerados
+    “anormais”. Por conseguinte, alguém que desejasse gratificar seu prazer à
+    maneira do século XVI, queimando gatos, seria hoje considerado “anormal”
+    simplesmente porque o condicionamento normal em nosso estágio de civilização
+    restringe a manifestação de prazer nesses atos mediante uma ansiedade instilada
+    sob a forma de autocontrole.
+    Neste caso, obviamente, opera o mesmo tipo de mecanismo psicológico com base no
+    qual ocorreu a mudança a longo prazo da personalidade: manifestações
+    socialmente indesejáveis de instintos e prazer são ameaçadas e punidas com
+    medidas que geram e reforçam desagrado e ansiedade. Na repetição constante do
+    desagrado despertado pelas ameaças, e na habituação a esse ritmo, o desagrado
+    dominante é compulsoriamente associado até mesmo a comportamentos que, na sua
+    origem, possam ser agradáveis. Dessa maneira, o desagrado e a ansiedade
+    socialmente despertados — hoje representados, embora nem sempre nem
+    exclusivamente, pelos pais — lutam com desejos ocultos. O que foi mostrado
+    aqui, de diferentes ângulos, como um avanço nas fronteiras da vergonha, do
+    patamar da repugnância, dos padrões das emoções, provavelmente foi posto em
+    movimento por mecanismos como esses.
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