(Livro de imagens da Idade Média) ([esta é uma das representações que Elias comenta](https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/20/Pinker-HausBuch1480.jpg))
e [Bruegel](https://www.pieter-bruegel-the-elder.org/).
* Crítica a Talcott Parsons e à apologia ao conceito de "alma" ou "mente" como "fantasma na máquina" (caixa preta).
## Excertos
### Da Introdução de Renato Janine Ribeiro
Mais que contar anedotas, porém, Elias está mostrando algo que sempre lhe foi
muito caro, enquanto teoria: o desenvolvimento dos modos de conduta, a
“civilização dos costumes” (como se chamou a tradução francesa deste livro),
prova que não existe atitude natural no homem. Acostumamo-nos a imaginar que
tal ou qual forma de trato é melhor porque melhor expressa a natureza humana —
nada disso, diz Elias, na verdade o que houve foi um condicionamento (por este
lado, ele é levemente behaviorista) e um adestramento (por aqui, ele remete a
Nietzsche e a Freud). Dos débitos para com os psicólogos ele próprio fala, bem
como de seus referenciais sociológicos, na Introdução de 1968, que vai no fim
deste volume. Seria bom recordarmos, um pouco, Nietzsche.
Num de seus mais importantes livros, Da genealogia da moral, Nietzsche insiste
em como foi difícil e que custos teve, para o homem, a instauração da moral (ou
mesmo, se quisermos, de várias morais). Em outras palavras, a moralidade não é
um traço natural, nem legado da graça de Deus — ela foi adquirida por um
processo de adestramento que terminou fazendo, do homem, um animal
interessante, um ser previdente e previsível. Foi preciso que, pela dor, ele
constituísse uma memória, mas não no sentido aparente de apenas não esquecer o
passado: onde ela mais importa é quando se faz prospectiva, quando se torna
como que um programa de atuação — marcando o sujeito para lembrar bem o que
prometeu, o que disse, de modo a não o descumprir. A memória importa não tanto
pelo conhecimento que traz, mas pela ação que ela governa. O seu custo é a dor.
Foi preciso torturar para produzi-la — e Pierre Clastres, num artigo, retomou
esta ideia, descrevendo os ritos de iniciação dos rapazes índios como sendo
lições de memória futura, inscrição no corpo e na mente da lei da igualdade.*
É desta maneira que Norbert Elias pensa. Pode respeitar os costumes que se
civilizaram (transparece até mesmo sua simpatia por eles), mas sempre tem em
mente que o condicionamento foi e é caro. Uma responsabilidade enorme vai
pesando sobre o homem à medida que ele se civiliza. E isso tanto se entende à
luz das torturas, físicas ou psíquicas (destas ele fala, em belas páginas,
sobre a educação das crianças), que Nietzsche havia identificado na origem da
cultura, quanto à luz do que Freud diz, no fim da vida, sobre a própria
civilização: quanto mais aumenta, mais cresce a infelicidade.
Sabemos que esta equação foi e tem sido bastante contestada — curioso acaso que
a Introdução de Norbert Elias date do mesmo ano de 1968 que marcou a explosão
do movimento estudantil e, paralelamente, a publicação do livro de Marcuse,
Eros e civilização,** que é justamente a primeira grande crítica dirigida à
ideia de que o custo da Kultur está na infelicidade, no crescente recalcamento
das pulsões cuja satisfação pode nos fazer felizes. É este um ponto a discutir,
e sobre o qual duvido que haja resposta convincente, pelo menos por ora.
[...]
Richard Sennett, em seu O declínio do homem público,*** propõe justamente, ao
contrário de Elias, entender como distintivo dos últimos duzentos anos um
“triunfo da intimidade”, uma ênfase cada vez maior na publicação do que outrora
seria íntimo e recatado. A própria psicanálise representaria, com o papel dado
à vida sexual no tratamento, um dos exemplos de como apostamos na revelação de
nossos afetos mais secretos com a esperança de assim encontrarmos uma vida
melhor, ou uma cura.
[...]
O que pode também ser discutido, nesta obra de Elias, é a ideia de que existe
um sentido na história. Com frequência, ele volta à sua ideia reguladora de que
fenômenos à primeira vista carentes de sentido se examinados a olho nu ou na
escala do tempo imediato revelam, porém, seu nexo quando postos contra uma
medida de longo prazo. (Temos, aí, mais uma convergência de Elias com os
historiadores franceses das mentalidades, adeptos da “longa duração” como a
medida mais adequada para estudar a história.) Esta medida de longo prazo, ou
“curva de civilização”, como a chama, adquire especial importância quando passa
a definir pelo menos os últimos setecentos anos da aventura humana. É verdade
que Elias não chega a apresentar essa “evolução” como sendo a única possível,
menos ainda como necessária, para o homem. Mas não é menos verdade que a seu
ver ela é definitiva, e desde que tomou conta do Ocidente foi assumindo um
caráter irreversível, a tal ponto (fica pelo menos sugerido) que terminará por
mundializar-se, alterando também os costumes dos povos que, mais primitivos,
vivem hoje de um modo que se compara à Europa medieval.
### Notas
Do Capítulo I:
Oswald Spengler, The Decline of the West (Londres, 1926), p.21: “A todas as
culturas se abrem possibilidades novas de expressão que surgem, amadurecem,
decaem, e nunca mais voltam… Essas culturas, essências vitais sublimadas,
crescem com a mesma soberba falta de propósito das flores do campo. Pertencem,
como as plantas e os animais, à Natureza viva de Goethe, e não à Natureza morta
de Newton.”
### Kultur e Zivilization
...
...
@@ -2022,6 +2109,46 @@ perturbando seu equilíbrio homeostático.
[...]
Nos países em fase de industrialização do século XIX, onde foram escritos os
primeiros grandes trabalhos pioneiros de sociologia, as vozes que expressavam
as crenças, ideais, esperanças e objetivos a longo prazo das nascentes classes
industriais ganharam, aos poucos, vantagens sobre as que procuravam preservar a
ordem social existente no interesse das tradicionais elites de poder dinásticas
de corte, aristocráticas ou patrícias. Foram as primeiras, em conformidade com
sua situação de classes emergentes, que alimentaram altas expectativas de um
futuro melhor. E como seus ideais se concentravam não no presente, mas no
futuro, sentiram um interesse todo especial pela dinâmica, pelo desenvolvimento
da sociedade. Juntamente com uma ou outra dessas classes industriais
emergentes, os sociólogos da época procuraram obter confirmação de que o
desenvolvimento da humanidade se daria na direção de seus desejos e esperanças.
Fizeram isso estudando a direção e as forças motivadoras do desenvolvimento
social até então. É muito difícil, porém, distinguir em retrospecto entre
doutrinas heterônomas, repletas de ideais de curto prazo condicionados pela
época em que apareceram, e os modelos conceituais que se revestem de
importância, independentemente desses ideais, e exclusivamente no que tange a
fatos verificáveis.
Por outro lado, no mesmo século seriam ouvidas vozes que, por uma ou outra
razão, opunham-se à transformação da sociedade pela via da industrialização,
cuja fé social era orientada para a conservação da herança existente, e que
ofereciam — aos que viam no presente um estado de deterioração — o ideal de um
passado melhor. Representavam elas não só as elites pré-industriais dos Estados
dinásticos, mas também grupos mais amplos de trabalhadores — acima de tudo os
que se ocupavam na agricultura e ofícios artesanais, cujo meio de vida
tradicional estava sendo corroído pelo avanço da industrialização. Eram os
adversários de todos aqueles que falavam do ponto de vista das crescentes
classes trabalhadoras industriais e que, de conformidade com a situação
ascendente dessas classes, buscavam inspiração na crença em um futuro melhor,
no progresso da humanidade. Desta maneira, no século XIX, o coro de vozes
dividia-se entre os que exaltavam um passado melhor e os que cantavam um futuro
mais risonho. Entre os sociólogos cuja imagem de sociedade se orientava para o
progresso e um futuro melhor eram encontrados, conforme sabemos, porta-vozes
das duas classes industriais. Incluíam eles homens como Marx e Engels, que se
identificavam com a classe operária industrial, e também sociólogos burgueses
como Comte, no início do século XIX, e Hobhouse, no fim.
[...]
O objetivo não é atacar outros ideais em nome dos ideais que temos, mas
procurar compreender melhor a estrutura desses processos em si e emancipar o
arcabouço teórico da pesquisa sociológica da primazia de ideais e doutrinas
...
...
@@ -2031,4 +2158,242 @@ perturbando seu equilíbrio homeostático.
a investigação do que é a ideias preconcebidas a respeito do que as soluções
devem ser.
A discussão que segue é muito porreta e vale a pena ser lida na íntegra.
A discussão que segue é muito porreta e vale a pena ser lida na íntegra. Em especial:
Se o presente estudo tem alguma importância em absoluto, isto resulta de sua
oposição a esta mistura do que é com o que devia ser, de análise científica com
ideal. Indica a possibilidade de libertar o estudo da sociedade da servidão a
ideologias sociais. Isto não quer dizer que um estudo de problemas sociais que
exclua ideias políticas e filosóficas implique renunciar à possibilidade de
influenciar o curso dos fatos políticos através dos resultados da pesquisa. O
que ocorre é o oposto. A utilidade da pesquisa sociológica, como instrumento da
prática social, só aumenta se o pesquisador não se engana projetando aquilo que
deseja, aquilo que acredita que deve ser, em sua investigação do que é e foi.
[...]
Essa cisão nos ideais, essa contradição no ethos no qual são educadas as
pessoas, encontra expressão em teorias sociológicas. Algumas delas tomam como
ponto de partida o indivíduo independente, autossuficiente, como a “verdadeira”
realidade e, por conseguinte, como o objeto autêntico da ciência social; outras
começam com a totalidade social independente. Algumas tentam harmonizar as duas
concepções, geralmente sem indicar como é possível reconciliar a ideia de um
indivíduo inteiramente independente e livre com a de uma “totalidade social”
igualmente independente e livre, e não raro sem perceber por inteiro a natureza
do problema.
### Indivíduo como sujeito aberto
No curso deste processo, as estruturas do ser humano individual são mudadas em
uma dada direção. É isto o que o conceito de “civilização”, no sentido factual
usado aqui, realmente significa.
[...]
Na filosofia clássica, essa figura entra em cena como sujeito epistemológico.
Neste papel, como homo philosophicus, o indivíduo obtém conhecimento do mundo
“externo” de uma forma inteiramente autônoma. Não precisa aprender, receber
seus conhecimentos de outros. O fato de que chegou ao mundo como criança, o
processo inteiro de seu desenvolvimento até a vida adulta e como adulto, são
ignorados como irrelevantes por essa imagem do homem. No desenvolvimento da
humanidade, foram precisos milhares de anos para que o homem começasse a
compreender as relações entre os fenômenos naturais, o curso das estrelas, a
chuva e o Sol, o trovão e o raio, como manifestações de uma sequência de
conexões causais cegas, impessoais, inteiramente mecânicas e regulares. Mas a
“personalidade fechada” do homo philosophicus aparentemente percebe essa cadeia
causal mecânica e regular, quando adulto, simplesmente abrindo os olhos, sem
precisar aprender coisa alguma sobre ela com seus semelhantes, e de modo
inteiramente independente do estágio de conhecimentos alcançado pela sociedade.
[...] Vimos aqui um exemplo da força com que a incapacidade de conceber
processos a longo prazo (isto é, mudanças estruturadas nas configurações
formadas por grande número de seres humanos interdependentes) ou de compreender
os seres humanos que formam essas configurações, está ligada a um certo tipo de
imagem do homem e da sua percepção de si mesmo.
[...] Pessoas para quem parece axiomático que seu próprio ser (ou ego, ou o
que mais possa ser chamado) existe, por assim dizer, “dentro” delas, isolado de
todas as demais pessoas e coisas “externas”, têm dificuldade em atribuir
importância a esses fatos que indicam que os indivíduos, desde o início de sua
vida, existem em interdependência dos outros. Têm dificuldade em conceber as
pessoas como relativa, mas não absolutamente, autônomas e interdependentes,
formando configurações mutáveis entre si.
[...]
A armadilha conceitual na qual estamos sendo continuamente colhidos por ideias
estáticas, como “indivíduo” e “sociedade”, só pode ser aberta se, como é feito
aqui, elas são desenvolvidas ainda mais, em conjunto com estudos empíricos,
isto de maneira tal que os dois conceitos sejam levados a se referirem a
processos. Essa tentativa, porém, é inicialmente bloqueada pela extraordinária
convicção implantada nas sociedades europeias, desde aproximadamente os dias da
Renascença, pela autopercepção de seres humanos em termos de seu próprio
isolamento, da completa separação entre seu “interior” e tudo o que é
“exterior”.
[...]
Esta autopercepção também se encontra, em forma menos racionalizada, na
literatura de ficção — como, por exemplo, no lamento de Virginia Woolf sobre a
incomunicabilidade da experiência como causa da solidão humana. [...]
Estaremos nós acaso tratando, como tantas vezes parece ser, de uma experiência
eterna, fundamental, de todos os seres humanos, que não admite qualquer outra
explicação, ou apenas do tipo de autopercepção que caracteriza um certo estágio
no desenvolvimento de configurações formadas por pessoas, e das pessoas que as
formam?
[...]
Não foram simplesmente as novas descobertas, o aumento cumulativo dos
conhecimentos sobre os objetos da reflexão humana, que se fizeram necessários
para tornar possível a transição de uma visão do mundo, de geocêntrica para
heliocêntrica. O que foi necessário, acima de tudo, foi um aumento na
capacidade do homem para se distanciar, mentalmente, de si mesmo. Modos
científicos de pensamento não podem ser desenvolvidos, nem se tornar geralmente
aceitos, a menos que as pessoas renunciem à sua inclinação primária,
irrefletida e espontânea a compreender todas as suas experiências em termos de
seu propósito e significado para si mesmas. O desenvolvimento que levou a um
conhecimento mais profundo e ao crescente controle da natureza foi, por
conseguinte, se considerado neste aspecto, também o desenvolvimento no sentido
de maior autocontrole pelo homem.
[...]
Não é possível entrar em mais detalhes aqui sobre as ligações entre o
desenvolvimento do método científico pelo qual se adquire conhecimento de
objetos, por um lado, e o desenvolvimento de novas atitudes do homem para
consigo mesmo, novas estruturas de personalidade e, especialmente, mudanças
rumo a um maior controle das emoções e autodistanciamento, por outro. Talvez
contribua para a compreensão destes problemas lembrar o egocentrismo
espontâneo, irrefletido, de pensamento que podemos observar a qualquer momento
nas crianças de nossa própria sociedade. Um controle mais rigoroso das emoções,
desenvolvido em sociedade e aprendido pelo indivíduo, e acima de tudo um grau
mais alto de controle emocional autônomo, foi necessário para que a visão do
mundo centralizada na Terra e nas pessoas que nela vivem fosse superada por
outra que, como a visão heliocêntrica, concorda melhor com os fatos
observáveis, mas que era de início menos gratificante emocionalmente, porquanto
tirava o homem de sua posição no centro do universo e o colocava em um dos
muitos planetas que revolvem em torno do centro. A passagem da compreensão da
natureza legitimada pela fé tradicional para outra, baseada na pesquisa
científica, e a mudança rumo a maior controle emocional que essa passagem
acarretou, é um aspecto do processo civilizador, que no estudo que ora
republico examino a partir de outros aspectos.
[...]
O desenvolvimento da ideia de que a Terra gira em torno do Sol de uma maneira
puramente mecânica, de acordo com leis naturais — isto é, de uma maneira que de
forma alguma é determinada por qualquer finalidade referida à humanidade e, por
conseguinte, não mais possui qualquer notável importância emocional para o
homem — pressupunha e exigia ao mesmo tempo um desenvolvimento nos próprios
seres humanos, no sentido de aumento do controle emocional, maior contenção da
sensação espontânea de que tudo o que experimentassem, e tudo que lhes dissesse
respeito, expressava uma intenção, um destino, uma finalidade que se
relacionava com eles próprios. Agora, na época que chamamos de “moderna”, os
homens chegaram a um estágio de autodistanciamento que lhes permite conceber os
processos naturais como uma esfera autônoma que opera sem intenção, finalidade
ou destino, em uma forma puramente mecânica ou causal, e que tem significação
ou finalidade para eles apenas se estiverem em condições, através do
conhecimento objetivo, de controlá-los e, desta maneira, dar-lhes significado e
finalidade. Mas, nesse estágio, ainda não são capazes de se distanciarem o
suficiente de si mesmos para tornar seu próprio autodistanciamento, sua própria
contenção de emoções — em suma, as condições de seu próprio papel como o
sujeito da compreensão científica da natureza — objeto do conhecimento e da
indagação científica.
[...]
Os autocontroles individuais autônomos criados dessa maneira na vida social,
tais como o “pensamento racional” e a “consciência moral”, nesse momento se
interpõem mais severamente do que nunca entre os impulsos espontâneos e
emocionais, por um lado, e os músculos do esqueleto, por outro, impedindo mais
eficazmente os primeiros de comandar os segundos (isto é, de pô-los em ação)
sem a permissão desses mecanismos de controle.
[...]
Todos eles mostram as marcas da transição para um estágio ulterior de
autoconsciência, no qual o autocontrole embutido das emoções torna-se mais
forte e maior o distanciamento reflexivo, enquanto a espontaneidade da ação
afetiva diminui, e no qual as pessoas sentem essas suas peculiaridades mas
ainda não se distanciam o suficiente delas em pensamento para fazerem de si
mesmas um objeto de investigação.
[...]
Chegamos assim um pouco mais perto do centro da estrutura da personalidade
individual subjacente à experiência de si mesmo do homo clausus. Se
perguntamos, mais uma vez, o que realmente deu origem a esse conceito de
indivíduo como encapsulado “dentro” de si mesmo, separado de tudo o que existe
fora dele, e o que a cápsula e o encapsulado realmente significam em termos
humanos, podemos ver agora a direção em que deve ser procurada a resposta. O
controle mais firme, mais geral e uniforme das emoções, característico dessa
mudança civilizadora, juntamente com o aumento de compulsões internas que, mais
implacavelmente do que antes, impedem que todos os impulsos espontâneos se
manifestem direta e motoramente em ação, sem a intervenção de mecanismos de
controle — são o que é experimentado como a cápsula, a parede invisível que
separa o “mundo interno” do indivíduo do “mundo externo” ou, em diferentes
versões, o sujeito de cognição de seu objeto, o “ego” do outro, o “indivíduo”
da “sociedade”. O que está encapsulado são os impulsos instintivos e
emocionais, aos quais é negado acesso direto ao aparelho motor. Eles surgem na
autopercepção como o que é ocultado de todos os demais, e, não raro, como o
verdadeiro ser, o núcleo da individualidade. A expressão “o homem interior” é
uma metáfora conveniente, mas que induz em erro.
### O conceito de configuração
A imagem do homem como “personalidade fechada” é substituída aqui pela de
“personalidade aberta”, que possui um maior ou menor grau (mas nunca absoluto
ou total) de autonomia face a de outras pessoas e que, na realidade, durante
toda a vida é fundamentalmente orientada para outras pessoas e dependente
delas. A rede de interdependências entre os seres humanos é o que os liga. Elas
formam o nexo do que é aqui chamado configuração, ou seja, uma estrutura de
pessoas mutuamente orientadas e dependentes. Uma vez que as pessoas são mais ou
menos dependentes entre si, inicialmente por ação da natureza e mais tarde
através da aprendizagem social, da educação, socialização e necessidades
recíprocas socialmente geradas, elas existem, poderíamos nos arriscar a dizer,
apenas como pluralidades, apenas como configurações. Este o motivo por que,
conforme afirmado antes, não é particularmente frutífero conceber os homens à
imagem do homem individual. Muito mais apropriado será conjecturar a imagem de
numerosas pessoas interdependentes formando configurações (isto é, grupos ou
sociedades de tipos diferentes) entre si. Vista deste ponto de vista básico,
desaparece a cisão na visão tradicional do homem.
### Dança, mu-dança
O que temos em mente com o conceito de configuração pode ser convenientemente
explicado com referência às danças de salão. Elas são na verdade, o exemplo
mais simples que poderíamos escolher. Pensemos na mazurca, no minueto, na
polonaise, no tango, ou no rock’n’roll. A imagem de configurações móveis de
pessoas interdependentes na pista de dança talvez torne mais fácil imaginar
Estados, cidades, famílias, e também sistemas capitalistas, comunistas e
feudais como configurações. Usando este conceito, podemos eliminar as
antíteses, chegando finalmente a valores e ideais diferentes, implicados hoje
no uso das palavras “indivíduo” e “sociedade”. Certamente podemos falar na
dança em termos gerais, mas ninguém a imaginará como uma estrutura fora do
indivíduo ou como uma mera abstração. As mesmas configurações podem certamente
ser dançadas por diferentes pessoas, mas, sem uma pluralidade de indivíduos
reciprocamente orientados e dependentes, não há dança. Tal como todas as demais
configurações sociais, a da dança é relativamente independente dos indivíduos
específicos que a formam aqui e agora, mas não de indivíduos como tais. Seria
absurdo dizer que as danças são construções mentais abstraídas de observações
de indivíduos considerados separadamente. O mesmo se aplica a todas as demais
configurações. Da mesma maneira que as pequenas configurações da dança mudam —
tornando-se ora mais lentas, ora mais rápidas — também assim, gradualmente ou
com maior subitaneidade, acontece com as configurações maiores que chamamos de
sociedades. O estudo que se segue diz respeito a essas mudanças.
### Dinâmica criadora de monopólios
Desta maneira, o ponto de partida para o estudo do processo de formação do
Estado é uma configuração constituída de numerosas unidades sociais
relativamente pequenas, em livre competição umas com as outras. A investigação
mostra como e por que essa configuração muda. Demonstra simultaneamente que há
explicações que não revestem o caráter de explicações causais. Isto porque uma
mudança na configuração é explicada em parte pela dinâmica endógena dela mesma,
a tendência a formar monopólios que é imanente a uma configuração de unidades
livremente competitivas entre si. O estudo mostra por conseguinte como no curso
dos séculos a configuração inicial se transforma em outra, na qual essas
grandes oportunidades de poder monopolístico são ligadas a uma única posição
social — a monarquia —, e nenhum ocupante de qualquer outra posição social na
rede de interdependências pode competir com o monarca. Ao mesmo tempo, indica
como as estruturas de personalidade dos seres humanos mudam também em conjunto