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* Controle social, "restrições ao jogo de emoções".
* O Uso da Faca à Mesa, Do Uso do Garfo à Mesa: ótima dissertação.
* Hilário: "Mudanças de Atitude em Relação a Funções Corporais", sobre urinar, cagar, peidar publicamente, etc.
* [Mittelalterliches Hausbuch](https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Mittelalterliches_Hausbuch_von_Schloss_Wolfegg)
(Livro de imagens da Idade Média) ([esta é uma das representações que Elias comenta](https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/20/Pinker-HausBuch1480.jpg))
e [Bruegel](https://www.pieter-bruegel-the-elder.org/).
### Kultur e Zivilization
......@@ -1711,3 +1714,321 @@ desagradáveis mencionadas na edição anterior ou mesmo em manuais de outras
aqui, de diferentes ângulos, como um avanço nas fronteiras da vergonha, do
patamar da repugnância, dos padrões das emoções, provavelmente foi posto em
movimento por mecanismos como esses.
### Em tempos medievais
A forca, o símbolo do poder judiciário de cavaleiro, é parte do ambiente de sua
vida. Talvez não seja muito importante, mas, de qualquer maneira, não é um
espetáculo particularmente doloroso. Sentença, execução, morte tudo isto é uma
presença constante nessa vida. Elas, também, não foram ainda removidas para
trás da cena.
[...]
por exemplo, na obra de Breughel, um padrão de repugnância que lhe permite
trazer para as telas aleijados, camponeses, cadafalsos, ou pessoas que se
aliviam de necessidades corporais. Mas o padrão visto neles está vinculado a
sentimentos sociais muito diferentes dos que vemos nesses quadros em que
aparece a classe alta de fins do período medieval.
[...]
Essas cenas de amor são tudo, menos “obscenas”. O amor é apresentado nelas como
tudo o mais na vida do cavaleiro fidalgo, torneios, caçadas, campanhas,
pilhagens. As cenas não são especialmente ressaltadas. Não sentimos em sua
representação coisa alguma da violência, da tendência para excitar ou
gratificar a satisfação de desejos negados na vida, característica de tudo o
que é “obsceno”. Esse desenho não nasce de uma alma oprimida, nem revela nada
de “secreto” mediante a violação de tabus.
[...]
Todas essas cenas são o retrato de uma sociedade na qual as pessoas davam vazão
a impulsos e sentimentos de forma incomparavelmente mais fácil, rápida,
espontânea e aberta do que hoje, na qual as emoções eram menos controladas e,
em consequência, menos reguladas e passíveis de oscilar mais violentamente
entre extremos.
Mas tais restrições e controles se faziam em uma direção diferente e em grau
menor que em períodos posteriores, e não assumiam a forma de autocontrole
constante, quase automático. O tipo de integração e interdependência em que
viviam essas pessoas não as compelia a abster-se de funções corporais uma na
frente da outra ou a controlar seus impulsos agressivos na mesma extensão que
na fase seguinte. Isto se aplica a todos. Mas, claro, para os camponeses, a
margem para agressão era mais restrita do que para o cavaleiro — isto é,
restrita a seus pares. [...] Uma restrição de ordem social às vezes se
impunha ao camponês pelo simples fato de que não tinha o suficiente para comer.
Isto certamente representa um controle de impulsos do mais alto grau e que
afeta todo o comportamento do ser humano. Mas ninguém prestava atenção a isso e
esta situação social dificilmente lhe tornava necessário impor controles a si
mesmo quando assoava o nariz, escarrava, ou pegava vorazmente comida na mesa.
[...]
A manifestação de sentimentos na sociedade medieval é, de maneira geral, mais
espontânea e solta do que no período seguinte. Mas não é livre ou sem modelagem
social em qualquer sentido absoluto. O homem sem restrições é um fantasma.
Reconhecidamente, a natureza, a força, o detalhamento de proibições, controles
e dependências mudam de centenas de maneiras e, com elas, a tensão e o
equilíbrio das emoções e, de idêntica maneira, o grau e tipo de satisfação que
o indivíduo procura e consegue.
### Autocontrole como resposta ao avanço da interdependência
Quanto mais avançam a interdependência e a divisão de trabalho na sociedade,
mais dependente a classe alta se torna das outras e maior, por conseguinte, a
força social destas, pelo menos potencialmente. Mesmo quando ela ainda é
principalmente uma classe guerreira, quando mantém as outras classes
dependentes sobretudo pela espada e o monopólio das armas, algum grau de
dependência dessas outras classes não está de todo ausente. Mas é
incomparavelmente menor, e menor também é, conforme veremos em mais detalhes
adiante, a pressão vinda de baixo. Em consequência, o senso de domínio da
classe alta, seu desprezo pelas demais, é muito mais franco, e muito menos
forte a pressão sobre ela para praticar moderação e controlar seus impulsos.
[...]
Um novo comedimento, um controle e regulação novo e mais extenso do
comportamento que a velha vida cavaleirosa fazia necessário ou possível, são
agora exigidos do nobre. São resultado da nova e maior dependência em que foi
colocado o nobre. Ele não é mais um homem relativamente livre, senhor de seu
castelo, do castelo que é sua pátria.
### Para uma teoria sobre civilizações
como e por que, no curso de transformações gerais da sociedade, que ocorrem em
longos períodos de tempo e em determinada direção — e para as quais foi adotado
o termo “desenvolvimento” —, a afetividade do comportamento e experiência
humanos, o controle de emoções individuais por limitações externas e internas,
e, neste sentido, a estrutura de todas as formas de expressão, são alterados em
uma direção particular? Essas mudanças são indicadas na fala diária quando
dizemos que pessoas de nossa própria sociedade são mais “civilizadas” do que
antes, ou que as de outras sociedades são mais “incivis” ou menos “civilizadas”
(ou mesmo mais “bárbaras”) que as da nossa. São óbvios os juízos de valor
contidos nessas palavras, embora sejam menos óbvios os fatos a que se referem.
Isto acontece em parte porque os estudos empíricos de transformações a longo
prazo de estruturas de personalidade, e em especial de controle de emoções, dão
origem a grandes dificuldades no estágio atual das pesquisas sociológicas. À
frente do interesse sociológico no presente, encontramos processos de prazo
relativamente curto e, em geral, apenas problemas relativos a um dado estado da
sociedade. As transformações a longo prazo das estruturas sociais e, por
conseguinte, também, das estruturas da personalidade, perderam-se de vista na
maioria dos casos.
O presente estudo diz respeito a esses processos de longo prazo. A sua
compreensão pode ser facilitada por uma curta indicação dos vários tipos que
esses processos assumem. Para começar, podemos distinguir duas direções
principais nas mudanças estruturais das sociedades: as que tendem para maior
diferenciação e integração, e as que tendem para menos. Além disso, há um
terceiro tipo de processo social, no curso do qual é mudada a estrutura de uma
sociedade, ou de alguns de seus aspectos particulares, mas sem haver tendência
de aumento ou diminuição no nível de diferenciação e integração. Por último,
são incontáveis as mudanças na sociedade que não implicam mudança em sua
estrutura. Este trabalho não faz justiça a toda a complexidade dessas mudanças,
porquanto numerosas formas híbridas, e não raro vários tipos de mudança, mesmo
em direções opostas, podem ser observadas simultaneamente na mesma sociedade.
Mas, por ora, este curto esboço dos diferentes tipos de mudança deve bastar
para indicar os problemas de que trata este estudo.
O primeiro volume concentra-se, acima de tudo, na questão de saber se a
suposição, baseada em observações dispersas, de que há mudanças a longo prazo
nas emoções e estruturas de controle das pessoas em sociedades particulares —
mudanças que se desenvolvem ao longo de uma única e mesma direção durante
grande número de gerações — pode ser confirmada por evidência fidedigna e
encontrar comprovação factual.
[...]
A demonstração de uma mudança em emoções e estruturas de controle humanas que
ocorre ao longo de muitas gerações, e na mesma direção ou, em curtas palavras,
o aumento do reforço e diferenciação dos controles — gera outra questão: é
possível relacionar essa mudança a longo prazo nas estruturas da personalidade
com mudanças a longo prazo na sociedade como um todo, que de igual maneira
tendem a uma direção particular, a um nível mais alto de diferenciação e
integração social? O segundo volume trata desses problemas.
No tocante a essas mudanças estruturais a longo prazo da sociedade, falta
também prova empírica. Tornou-se, por conseguinte, necessário no segundo volume
dedicar parte do mesmo à descoberta e elucidação das ligações factuais nesta
segunda área. A questão é se uma mudança estrutural da sociedade como um todo,
tendendo a um nível mais alto de diferenciação e integração, pode ser
demonstrada com ajuda de evidência empírica confiável. Isto se revelou
possível. O processo de formação dos Estados nacionais, discutido no segundo
volume, constitui um exemplo desse tipo de mudança estrutural. Finalmente, em
um esboço provisório de uma teoria de civilização, elabora-se um modelo, a fim
de demonstrar possíveis ligações entre a mudança a longo prazo nas estruturas
da personalidade no rumo da consolidação e diferenciação dos controles
emocionais, e a mudança a longo prazo na estrutura social com vistas a um nível
mais alto de diferenciação e integração como, por exemplo, visando a uma
diferenciação e prolongamento das cadeias de interdependência e à consolidação
dos “controles estatais”.
[...]
Facilmente se pode compreender que ao adotar uma metodologia voltada para
ligações factuais e suas explicações (isto é, um enfoque empírico e teórico
preocupado com mudanças estruturais de longo prazo de um tipo específico, ou
“desenvolvimento”), abandonamos as ideias metafísicas que vinculam o conceito
de desenvolvimento à noção ou de uma necessidade mecânica ou de uma finalidade
teleológica.
[...]
este estudo nem era de uma “evolução”, no sentido do século XIX, de um
progresso automático, nem de uma “mudança social” inespecífica no sentido do
século XX. Naquele tempo isto me pareceu tão óbvio que deixei de mencionar
explicitamente essas implicações teóricas. A introdução à segunda edição me dá
a oportunidade de corrigir essa omissão.
[...]
A situação é semelhante no tocante a grande número de outros problemas aqui
estudados. Quando, após vários estudos preparatórios que me permitiram
investigar a evidência documentária e explorar os problemas teóricos
gradualmente emergentes, o caminho para uma possível solução pareceu mais
claro, tornei-me consciente de que este estudo ajuda a solucionar o renitente
problema da ligação entre estruturas psicológicas individuais (as assim
chamadas estruturas de personalidade) e as formas criadas por grandes números
de indivíduos interdependentes (as estruturas sociais). E o faz porque aborda
ambos os tipos de estruturas não como fixos, como em geral acontece, mas como
mutáveis, como aspectos interdependentes do mesmo desenvolvimento de longo
prazo.
### Os limites de conceber as coisas como um mero jogo de cartas
A fim de exemplificar este fato, bastará discutir a maneira como o homem que é
atualmente considerado o principal teórico da sociologia, Talcott Parsons,
tenta colocar e solucionar alguns dos problemas aqui estudados. É
característico do enfoque teórico de Parsons tentar dissecar analiticamente, em
seus componentes elementares, como disse ele certa vez,1 os diferentes tipos de
sociedades em seu campo de observação. A um tipo particular de componente
elementar ele chamou de “variáveis de padrão”. Essas variáveis de padrão
incluem a dicotomia entre “afetividade” e “neutralidade afetiva”. Sua concepção
pode ser mais bem-entendida comparando-se a sociedade com um jogo de cartas:
cada tipo de sociedade, na opinião de Parsons, representa uma “mão” diferente.
As cartas, porém, são sempre as mesmas e seu número é pequeno, por mais
diversas que sejam suas faces. Uma das cartas com que o jogo é disputado é a
polaridade entre afetividade e neutralidade afetiva. Parsons concebeu
originariamente essa ideia, segundo nos diz, analisando os tipos de sociedade
de Tönnies, a Gemeinschaft (comunidade) e Gesellschaft (sociedade). A
“comunidade”, parece acreditar ele, caracteriza-se pela afetividade, e a
“sociedade”, pela neutralidade afetiva. Mas, ao determinar as diferenças entre
diferentes tipos de sociedade, e diferentes tipos de relacionamentos dentro da
mesma, ele atribui a essa “variável de padrão” no jogo de cartas, como a
outras, um significado inteiramente geral. No mesmo contexto, Parsons trata do
problema da relação entre estrutura social e personalidade.2 Indica que
conquanto antes os tivesse interpretado simplesmente como “sistemas de ação
humana” estreitamente vinculados e interatuantes, agora pode declarar com
certeza que, em um sentido teórico, eles são fases, ou aspectos, diferentes de
um único e mesmo sistema de ação fundamental. Ilustra isto com um exemplo,
explicando que o que no plano sociológico pode ser considerado como uma
institucionalização da neutralidade afetiva é, essencialmente, o mesmo que no
nível da personalidade pode ser considerado como “na imposição da renúncia à
gratificação imediata, no interesse da organização disciplinada e dos objetivos
a longo prazo da personalidade”.
[...]
[1] in Talcott Parsons, Essays in Sociological Theory (Glencoe, 1963), p.359 e segs.
[...]
O que, neste livro, com ajuda de extensa documentação empírica se mostra que é
um processo, Parsons, pela natureza estática de seus conceitos, reduz
retrospectivamente, e em minha opinião sem nenhuma necessidade, a estados. Em
vez de um processo relativamente complexo, mediante o qual a vida afetiva das
pessoas é gradualmente levada a um maior e mais uniforme controle de emoções —
mas certamente não a um estado de total neutralidade afetiva —, Parsons sugere
uma simples oposição entre dois estados, afetividade e neutralidade afetiva,
que supostamente estariam presentes em graus diferentes em diferentes tipos de
sociedade, tal como quantidades diferentes de substâncias químicas.
[...]
Os fenômenos sociais, na verdade, só podem ser observados como evoluindo e
tendo evoluído. Sua dissecação por meio de pares de conceitos, que restringem a
análise a dois estados antitéticos, representa um desnecessário empobrecimento
da percepção sociológica tanto a nível empírico como teórico.
[...]
As categorias básicas selecionadas por Parsons, no entanto, parecem-me
arbitrárias no mais alto grau. Subjacentes a elas há a noção tácita, não
comprovada e supostamente axiomática, de que o objetivo de toda teoria
científica é o de reduzir tudo o que é variável a algo invariável, e
simplificar todos os fenômenos complexos dissecando-os em seus componentes
individuais.
Construções auxiliares desnecessariamente complicadas:
O exemplo da teoria de Parsons, no entanto, sugere que a teorização no campo da
sociologia é mais complicada, do que simplificada, por uma sistemática redução
dos processos sociais a estados sociais, e de fenômenos complexos,
heterogêneos, a componentes mais simples e só aparentemente homogêneos. Este
tipo de redução e abstração poderia justificar-se como método de teorização
apenas se levasse, inequivocamente, a uma compreensão mais clara e profunda
pelos homens de si mesmos como sociedades e como indivíduos. Em vez disso,
descobrimos que as teorias formuladas por esses métodos, tal como a teoria do
epiciclo de Ptolomeu, exigem construções auxiliares desnecessariamente
complicadas, a fim de fazer com que concordem com os fatos observáveis. Não
raro elas parecem nuvens escuras das quais, daqui e dali, caem uns poucos raios
de luz que tocam a terra.
Processos:
Na verdade, é indispensável que o conceito de processo seja incluído em teorias
sociológicas ou de outra natureza que tratem de seres humanos. Conforme
demonstrado neste estudo, a relação entre o indivíduo e as estruturas sociais
só pode ser esclarecida se ambos forem investigados como entidades em mutação e
evolução. Só então será possível construir modelos de seus relacionamentos,
como é feito aqui, que concordam com fatos demonstráveis.
[...]
Sem jamais dizer isto clara e abertamente, Parsons e todos os sociólogos da
mesma inclinação imaginam que existam separadamente essas coisas a que se
referem os conceitos de “indivíduo” e “sociedade”. Assim — para dar apenas um
exemplo —, Parsons adota a noção, já desenvolvida por Durkheim, de que a
relação entre “indivíduo” e “sociedade” é uma “interpenetração” do indivíduo e
do sistema social. Como quer que essa “interpenetração” seja concebida, o que
mais pode essa metáfora significar, senão que estamos tratando de duas
entidades diferentes que, primeiro, existem separadamente e que depois se
“interpenetram”?3
Segue uma ótima crítica à sociologia estrutural/estática que enxerga sociedades
como sistemas em repouso e que apenas buscam o repouso quando ocorre algum acidente
perturbando seu equilíbrio homeostático.
### Humildar: sacar mais qual é a real e não se iludir
Muitos dos artigos de fé sociológicos pioneiros não foram mais aceitos pelos
sociólogos do século XX. Eles incluíam, acima de tudo, a crença em que o
desenvolvimento da sociedade é necessariamente uma evolução para o melhor, um
movimento na direção do progresso. Esta crença foi categoricamente rejeitada
por muitos sociólogos posteriores, de acordo com sua própria experiência
social.
[...]
Se, no século XIX, concepções específicas do que devia ser ou do que se
desejava que fosse — concepções ideológicas específicas — levaram a um
interesse fundamental pelo desenvolvimento da sociedade, no século XX outras
concepções do que devia ser ou era desejável — outras concepções ideológicas —
geraram pronunciado interesse entre os principais teóricos pelo estado da
sociedade como ela se encontra, negligenciando os problemas da dinâmica das
formações sociais, e sua falta de interesse por problemas de processo de longa
duração e por todas as oportunidades de explicação que o estudo desses
problemas proporciona.
[...]
O objetivo não é atacar outros ideais em nome dos ideais que temos, mas
procurar compreender melhor a estrutura desses processos em si e emancipar o
arcabouço teórico da pesquisa sociológica da primazia de ideais e doutrinas
sociais. Isto porque só poderemos reunir conhecimentos sociológicos adequados o
suficiente para serem usados na solução dos agudos problemas da sociedade se,
quando equacionamos e resolvemos problemas sociológicos, deixamos de subordinar
a investigação do que é a ideias preconcebidas a respeito do que as soluções
devem ser.
A discussão que segue é muito porreta e vale a pena ser lida na íntegra.
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