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burguesia ou as barreiras que impediam o desenvolvimento do comércio — este
processo civilizador devia seguir-se ao refinamento de maneiras e à pacificação
interna do país pelos reis.
### Ruderia
Erasmo fala, por exemplo, da maneira como as pessoas olham.
[...]
A postura, os gestos, o vestuário, as expressões faciais — este comportamento
“externo” de que cuida o tratado é a manifestação do homem interior, inteiro.
Erasmo sabe disso e, vez por outra, o declara explicitamente: “Embora este
decoro corporal externo proceda de uma mente bem-constituída não obstante
descobrimos às vezes que, por falta de instrução, essa graça falta em homens
excelentes e cultos.” Não deve haver meleca nas narinas, diz ele mais adiante.
O camponês enxuga o nariz no boné ou no casaco e o fabricante de salsichas no
braço ou no cotovelo. Ninguém demonstra decoro usando a mão e, em seguida,
enxugando-a na roupa. É mais decente pegar o catarro em um pano,
preferivelmente se afastando dos circunstantes. Se, quando o indivíduo se assoa
com dois dedos, alguma coisa cai no chão, ele deve pisá-la imediatamente com o
pé. O mesmo se aplica ao escarro.
Com o mesmo infinito cuidado e naturalidade com que essas coisas são ditas — a
mera menção das quais choca o homem “civilizado” de um estágio posterior, mas
de diferente formação afetiva — somos ensinados a como sentar ou cumprimentar
alguém. São descritos gestos que se tornaram estranhos para nós, como, por
exemplo, ficar de pé sobre uma perna só. E bem que caberia pensar que muitos
dos movimentos estranhos de caminhantes e dançarinos que vemos em pinturas ou
estátuas medievais não representam apenas o “jeito” do pintor ou escultor, mas
preservam também gestos e movimentos reais que se tornaram estranhos para nós,
materializações de uma estrutura mental e emocional diferente.
[...]
Conforme já mencionado, os pratos são também raros. Quadros mostrando cenas de
mesa dessa época ou anterior sempre retratam o mesmo espetáculo, estranho para
nós, que é indicado no tratado de Erasmo. A mesa é às vezes forrada com ricos
tecidos, às vezes não, mas sempre são poucas as coisas que nela há: recipientes
para beber, saleiro, facas, colheres, e só. Às vezes, vemos fatias de pão, as
quadrae, que em francês são chamadas de tranchoir ou tailloir. Todos, do rei e
rainha ao camponês e sua mulher, comem com as mãos. Na classe alta há maneiras
mais refinadas de fazer isso, Deve-se lavar as mãos antes de uma refeição, diz
Erasmo. Mas não há ainda sabonete para esse fim. Geralmente, o conviva estende
as mãos e o pajem derrama água sobre elas. A água é às vezes levemente
perfumada com camomila ou rosmaninho.5 Na boa sociedade, ninguém põe ambas as
mãos na travessa. É mais refinado usar apenas três dedos de uma mão. Este é um
dos sinais de distinção que separa a classe alta da baixa.
Os dedos ficam engordurados. “Digitos unctos vel ore praelingere vel ad tunicam
extergere… incivile est”, diz Erasmo. Não é polido lambê-los ou enxugá-los no
casaco. Frequentemente se oferece aos outros o copo ou todos bebem na caneca
comum. Mas Erasmo adverte: “Enxugue a boca antes.” Você talvez queira oferecer
a alguém de quem gosta a carne que está comendo. “Evite isso”, diz Erasmo. “Não
é muito decoroso oferecer a alguém alguma coisa semimastigada.” E acrescenta:
“Mergulhar no molho o pão que mordeu é comportar-se como um camponês e
demonstra pouca elegância retirar da boca a comida mastigada e recolocá-la na
quadra. Se não consegue engolir o alimento, vire-se discretamente e cuspa-o em
algum lugar.”
[...]
Diversoria trata das diferenças entre as maneiras observadas em estalagens
alemãs e francesas. Descreve, por exemplo, o interior de uma estalagem alemã:
cerca de 80 ou 90 pessoas estão sentadas, salientando o autor que não são
apenas pessoas comuns, mas também homens ricos, nobres, homens, mulheres, e
crianças, todos juntos. E cada um está fazendo o que julga necessário. Um lava
as roupas e pendura as peças molhadas em cima do forno. Outro lava as mãos. Mas
a tigela é tão limpa, diz o autor, que a pessoa precisa de outra para se limpar
da água… É forte o cheiro de alho e outros odores desagradáveis. Pessoas
escarram por toda parte. Alguém está limpando as botas em cima da mesa. Em
seguida, a refeição é trazida. Todos molham o pão na travessa, mordem, e
molham-no novamente. O lugar é sujo e ruim o vinho. Se alguém pede vinho
melhor, o estalajadeiro responde: já hospedei muitos nobres e condes. Se o
vinho não lhe serve, procure outras acomodações.
[...]
Com a mesma simplicidade e clareza com que ele e Della Casa discutem questões,
tais como maior tato e decoro, Erasmo diz também: não se mova para a frente e
para trás na cadeira. Quem faz isso “speciem habet subinde ventris flatum
emittentis ant emittere conantis” (dá a impressão de constantemente soltar ou
tentar soltar ventosidades intestinais).
[...]
É contra o bom-tom segurar a faca ou a colher com toda mão, como se fosse
um porrete: segure-as sempre com os dedos.
### Conduta
A tendência cada vez maior das pessoas de se observarem e aos demais é um dos
sinais de que toda a questão do comportamento estava, nessa ocasião, assumindo
um novo caráter: as pessoas se moldavam às outras mais deliberadamente do que
na Idade Média.
Dizia-se a elas: façam isto, não façam aquilo. Mas de modo geral muita coisa
era tolerada. Durante séculos, aproximadamente as mesmas regras, elementares
segundo nossos padrões, foram repetidas, obviamente sem criar hábitos firmes.
Neste momento, a situação muda. Aumenta a coação exercida por uma pessoa sobre
a outra e a exigência de “bom comportamento” é colocada mais enfaticamente.
Todos os problemas ligados a comportamento assumem nova importância. O fato de
que Erasmo tenha reunido em um trabalho em prosa regras de conduta que haviam
sido transmitidas principalmente em versos mnemônicos ou espalhadas em tratados
sobre outros assuntos, e que tenha pela primeira vez dedicado um livro inteiro
à questão do comportamento em sociedade, e não apenas à mesa, é um claro sinal
da crescente importância do tema, como também o foi o sucesso do livro.35 E o
aparecimento de trabalhos semelhantes, como o Cortesão, de Castiglione, ou o
Galateo, de Della Casa, para citar apenas os mais conhecidos, aponta na mesma
direção. Os processos sociais subjacentes já foram indicados e serão discutidos
adiante em mais detalhes: os velhos laços sociais estão, se não quebrados, pelo
menos muito frouxos e em processo de transformação. Indivíduos de diferentes
origens sociais são reunidos de cambulhada. Acelera-se a circulação social de
grupos e indivíduos que sobem e descem na sociedade.
Em seguida, lentamente, durante o século XVI, mais cedo aqui, mais tarde ali e
em quase toda parte com numerosos reveses até bem dentro do século XVII, uma
hierarquia social mais rígida começa a se firmar mais uma vez e, de elementos
de origens sociais diversas, forma-se uma nova classe superior, uma nova
aristocracia. Exatamente por esta razão, a questão de bom comportamento
uniforme torna-se cada vez mais candente, especialmente porque a estrutura
alterada da nova classe alta expõe cada indivíduo de seus membros, em uma
extensão sem precedentes, às pressões dos demais e do controle social. E é
neste contexto que surgem os trabalhos de Erasmo. Castiglione, Della Casa e
outros autores sobre as boas maneiras. Forçadas a viver de uma nova maneira em
sociedade, as pessoas tornam-se mais sensíveis às pressões das outras. Não
bruscamente, mas bem devagar, o código do comportamento torna-se mais rigoroso
e aumenta o grau de consideração esperado dos demais. O senso do que fazer e
não fazer para não ofender ou chocar os outros torna-se mais sutil e, em
conjunto com as novas relações de poder, o imperativo social de não ofender os
semelhantes torna-se mais estrito, em comparação com a fase precedente. As
regras de courtoisie prescreviam também “Nada diga que possa provocar conflito
ou irritar os outros”: Non dicas verbum cuiquam quot ei sit acerbum.36
[...]
A regra de não estalar os lábios quando se come é também encontrada com
frequência em instruções medievais. Sua ocorrência no início do livro, porém,
mostra claramente o que mudou. Demonstra não só quanta importância é nesse
momento atribuída ao “bom comportamento”, mas, acima de tudo, como aumentou a
pressão que as pessoas exercem reciprocamente umas sobre as outras. Torna-se
imediatamente claro que esta maneira polida, extremamente gentil e
relativamente atenciosa de corrigir alguém, sobretudo quando exercida por um
superior, é um meio muito mais forte de controle social, muito mais eficaz para
inculcar hábitos duradouros do que o insulto, a zombaria ou ameaça de violência
física.
Nos diversos países formam-se sociedades pacificadas. O velho código de
comportamento é transformado, mas apenas de maneira muito gradual. O controle
social, no entanto, torna-se mais imperativo. E, acima de tudo, lentamente muda
a natureza e o mecanismo do controle das emoções. Na Idade Média, o padrão de
boas e más maneiras, a despeito de todas as disparidades regionais e sociais,
evidentemente não mudou de qualquer forma decisiva. Repetidamente, ao longo dos
séculos, as mesmas boas e más maneiras são mencionadas. O código social só
conseguiu consolidar hábitos duradouros numa quantidade limitada de pessoas.
Nesse momento, com a transformação estrutural da sociedade, com o novo modelo
de relações humanas, ocorre, devagar, uma mudança: aumenta a compulsão de
policiar o próprio comportamento. Em conjunto com isto é posto em movimento o
modelo de comportamento.
[...]
8. Não é tarefa das mais fáceis tornar esse movimento bem visível, sobretudo
porque ele ocorre com grande lentidão — em passos bem pequenos, por assim dizer
— e porque nele acontecem também múltiplas flutuações, seguindo curvas mais
curtas ou mais longas. É evidente que não basta estudar isoladamente cada única
fase a qual esta ou aquela declaração sobre costumes e maneiras se refere.
Temos que tentar enfocar o próprio movimento, ou pelo menos um grande segmento
dele, como um todo, como se acelerado. Imagens devem ser postas juntas em uma
série, a fim de nos proporcionar uma visão geral, de um aspecto particular, do
processo que se desenrola: a transformação gradual de comportamento e emoções,
o patamar, que se alarga, da aversão.
[...]
o movimento deve ser estudado em toda a sua polifonia de muitas camadas, não
como uma linha, mas como uma espécie de fuga, com uma sucessão de
movimentos-motifs semelhantes, em níveis diferentes.
[...]
Cabe à pessoa de mais alta posição no grupo desdobrar primeiro seu guardanapo e
os demais devem esperar até que ele o faça, antes de abrirem os seus. Quando as
pessoas são aproximadamente iguais, todas devem desdobrá-los juntas sem
cerimônia. [N.B. Com a “democratização” da sociedade e da família isto se
tornou a regra. A estrutura social, neste caso ainda do tipo
hierárquico-aristocrático, reflete-se na mais elementar das relações humanas.]É
errado usar o guardanapo para enxugar o rosto, e mais ainda limpar os dentes
com ele, e seria uma das mais graves infrações da civilidade usá-lo para se
assoar… O emprego que pode e deve dar ao guardanapo é o de enxugar a boca,
lábios, e dedos quando estiverem engordurados, limpar a faca antes de cortar o
pão e fazer o mesmo com a colher e o garfo depois de usá-los. [N.B. Este é um
dos muitos exemplos do extraordinário controle do comportamento concretizados
em nossos hábitos à mesa. O emprego de cada utensílio é limitado e definido por
grande número de regras bem precisas. Nenhuma delas é evidente por si mesma,
como pareceram a gerações posteriores. Seu uso foi desenvolvido aos poucos em
conjunto com a estrutura e mudanças nas relações humanas.]
### Dinâmica
A proibição não é nem de longe tão autoevidente como hoje. Vemos como, aos
poucos, transforma-se em um hábito internalizado, em parte do “autocontrole”.
As mudanças no padrão são muito instrutivas (Exemplo K, abaixo). Em alguns
aspectos são muito extensas. A diferença já se constata no que não mais precisa
ser dito. Muitos capítulos tornam-se menores. Muitas “más maneiras” antes
discutidas em detalhe merecem apenas uma referência de passagem. O mesmo se
aplica a numerosas funções corporais anteriormente comentadas em grande
extensão e minúcia. O tom é em geral menos suave e, não raro, muito mais duro
do que na primeira versão.
[...]
Ouvimos pessoas de diferentes épocas falando mais ou menos sobre o mesmo
assunto. Desta maneira, as mudanças se tornaram mais claras do que se as
tivéssemos descrito em nossas próprias palavras. Pelo menos do século XVI em
diante, as injunções e proibições pelas quais é modelado o indivíduo (de
conformidade com o padrão observado na sociedade) estão em movimento
ininterrupto. Este movimento, por certo, não é perfeitamente retilíneo, mas,
através de todas as suas flutuações e curvas individuais, uma tendência global
clara é apesar de tudo perceptível, se estas vozes dos séculos passados são
ouvidas em conjunto.
Os tratados do século XVI sobre as boas maneiras são obra da nova aristocracia
de corte, que está se aglutinando aos poucos a partir de elementos de várias
origens sociais. Com ela surge um diferente código de comportamento.
De Courtin, na segunda metade do século XVII, fala a partir de uma sociedade de
corte que é a mais plenamente consolidada — a da corte de Luís XIV. E se dirige
principalmente a pessoas de categoria, pessoas que não vivem diretamente na
corte, mas que desejam conhecer bem as maneiras e costumes que nela têm curso.
Afirma ele no prefácio: “Este tratado não se destina à impressão, mas apenas a
atender ao cavalheiro de província que solicitou ao autor, como amigo
particular seu, que ministrasse alguns preceitos de civilidade ao seu filho,
que ele tencionava enviar à corte quando completasse seus estudos… Ele (o
autor) empreendeu este trabalho apenas para conhecimento de gentes
bem-nascidas; apenas a elas é dirigido; e particularmente à juventude, que
poderá encontrar alguma utilidade nestes pequenos conselhos, já que nem todos
têm a oportunidade nem dispõem de meios para virem à corte, em Paris, aprender
os refinamentos da polidez.”
Pessoas que vivem ou fazem parte do círculo que dá exemplo não precisam de
livros para saber como “alguém” deve se comportar. Isto é óbvio. Por isso é
importante descobrir com que intenções e para que público esses preceitos são
escritos e publicados — preceitos que originariamente são o segredo distintivo
dos fechados círculos da aristocracia de corte.
Escalada das boas maneiras como forma de manutenção da distinção social:
O público visado é muito claro. Enfatiza-se que os conselhos são apenas para as
honnêtes gens, isto é, de modo geral, gente da classe alta. Em primeiro lugar,
o livro atende à necessidade da nobreza provinciana de se informar sobre o
comportamento na corte e, além disso, à de estrangeiros ilustres. Mas pode-se
supor que o sucesso apreciável deste livro resultou, entre outras coisas, do
interesse despertado nos principais estratos burgueses. Há muito material que
demonstra como, nesse período, os costumes, comportamento e modas da corte
espraiavam-se ininterruptamente pelas classes médias altas, onde eram imitados
e mais ou menos alterados de acordo com as diferentes situações sociais. Perdem
assim, dessa maneira e até certo ponto, seu caráter como meio de identificação
da classe alta. São, de certa forma, desvalorizados. Este fato obriga os que
estão acima a se esmerarem em mais refinamentos e aprimoramento da conduta. E é
desse mecanismo o desenvolvimento de costumes de corte, sua difusão para baixo,
sua leve deformação social, sua desvalorização como sinais de distinção — que o
movimento constante nos padrões de comportamento na classe alta recebe em parte
sua motivação. O importante é que nessa mudança, nas invenções e modas do
comportamento na corte, que à primeira vista talvez pareçam caóticas e
acidentais, com o passar do tempo emergem certas direções ou linhas de
desenvolvimento. Elas incluem, por exemplo, o que pode ser descrito como o
avanço do patamar do embaraço e da vergonha sob a forma de “refinamento” ou
como “civilização”. Um dinamismo social específico desencadeia outro de
natureza psicológica, que manifesta suas próprias lealdades.
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