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!meta title="O processo civilizador"
Índice
- Processo civiliza-DOR.
- Memória, autocontrole, adestramento, custo da civilização para os indivíduos, vide introdução.
- Controle social, "restrições ao jogo de emoções".
- O Uso da Faca à Mesa, Do Uso do Garfo à Mesa: ótima dissertação.
- Hilário: "Mudanças de Atitude em Relação a Funções Corporais", sobre urinar, cagar, peidar publicamente, etc.
Kultur e Zivilization
O conceito de “civilização” refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível
da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos
científicos, às ideias religiosas e aos costumes.
[...]
Já no emprego que lhe é dado pelos alemães Zivilisation, significa algo de fato
útil, mas, apesar disso, apenas um valor de segunda classe, compreendendo
apenas a aparência externa de seres humanos, a superfície da existência humana.
A palavra pela qual os alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra
expressa-lhes o orgulho em suas próprias realizações e no próprio ser, é
Kultur.
[...]
O que se manifesta nesse conceito de Kultur, na antítese entre profundeza e
superficialidade, e em muitos conceitos correlatos é, acima de tudo, a
autoimagem do estrato intelectual de classe média.
Vanguarda
Conforme dito acima, o movimento literário da segunda metade do século XVIII
não tem caráter político, embora, no sentido o mais amplo possível, constitua
manifestação de um movimento social, uma transformação da sociedade. Para
sermos exatos, a burguesia como um todo nele ainda não encontrava expressão.
Ele começou sendo a efusão de uma espécie de vanguarda burguesa, o que
descrevemos aqui como intelligentsia de classe média: numerosos indivíduos na
mesma situação e de origens sociais semelhantes espalhados por todo o país,
pessoas que se compreendiam porque estavam na mesma situação. Só raramente
membros dessa vanguarda se reuniam em algum lugar como grupo durante um período
maior ou menor de tempo. Quase sempre viviam isolados ou sós formando uma elite
em relação ao povo, mas pessoas de segunda classe aos olhos da aristocracia
cortesã.
Repetidamente, encontramos nessas obras a ligação entre tal posição social e os
ideais nelas postulados: o amor à natureza e à liberdade, a exaltação
solitária, a rendição às emoções do coração, sem o freio da “razão fria”. No
Werther, cujo sucesso demonstra como esses sentimentos eram típicos de uma dada
geração, isto é dito de maneira bem clara e inequívoca.
[...]
E em 15 de março de 1772: “Rilho os dentes… Após o jantar na casa do conde,
andamos de um lado para outro no grande parque. Aproxima-se a hora social.
Penso, sabe Deus sobre nada.” Ele permanece ali, os nobres chegam. As mulheres
murmuram entre si, alguma coisa circula entre os homens. Finalmente, o conde,
um tanto embaraçado, pede-lhe que se retire. A nobreza sente-se insultada ao
ver um burguês entre seus membros.
“‘Sabe’”, diz o conde, “‘acho que os convivas estão aborrecidos em vê-lo
aqui.’… Afastei-me discretamente da ilustre companhia e me dirigi a M., a fim
de observar o pôr do sol do alto da colina, enquanto lia no meu Homero o canto
que celebra como Ulisses foi hospitaleiramente recebido pelos excelentes
guardadores de porcos.”
Por um lado, superficialidade, cerimônia, conversas
formais; por outro, vida interior, profundidade de sentimento, absorção em
livros, desenvolvimento da personalidade individual. Temos o mesmo contraste
referido por Kant, na antítese entre Kultur e civilização, aplicado aqui a uma
situação social muito específica.
No Werther, Goethe mostra também com particular clareza as duas frentes entre
as quais vive a burguesia. “O que mais me irrita”, lemos na anotação de 24 de
dezembro de 1771, “é nossa odiosa situação burguesa. Para ser franco, sei tão
bem como qualquer outra pessoa como são necessárias as diferenças de classe,
quantas vantagens eu mesmo lhes devo. Apenas não deviam se levantar diretamente
como obstáculos no meu caminho.” Coisa alguma caracteriza melhor a consciência
de classe média do que essa declaração. As portas debaixo devem permanecer
fechadas. As que ficam acima têm que estar abertas. E como todas as classes
médias, esta estava aprisionada de uma maneira que lhe era peculiar: não podia
pensar em derrubar as paredes que bloqueavam a ascensão por medo de que as que
a separavam dos estratos mais baixos pudessem ceder ao ataque.
Todo o movimento foi de ascensão para a nobreza: o bisavô de Goethe fora
ferreiro,13 seu avô alfaiate e, em seguida, estalajadeiro, com uma clientela
cortesã, e maneiras cortesãs-burguesas. Já abastado, seu pai tornou-se
conselheiro imperial, burguês rico, de meios independentes, possuidor de
título. Sua mãe era filha de uma família patrícia de Frankfurt.
O pai de Schiller era cirurgião e, mais tarde, major, mal remunerado; mas seu
avô, seu bisavô e seu tataravô haviam sido padeiros. De origens sociais
semelhantes, ora mais próximas ora mais remotas, dos ofícios e da administração
de nível médio vieram Schubart, Bürger, Winkelmann, Herder, Kant, Friedrich
August Wolff, Fichte, e muitos outros membros do movimento.
[...]
De modo geral, permaneceram muito altas, segundo os padrões ocidentais, as
paredes entre a intelligentsia de classe média e a classe superior
aristocrática na Alemanha.
[...]
A burguesia comercial, que poderia ter servido como público para os escritores,
é relativamente subdesenvolvida na maioria dos Estados alemães no século XVIII.
A ascensão para a prosperidade apenas ensaia os primeiros passos nesse período.
Até certo ponto, por conseguinte, os escritores e intelectuais alemães como que
flutuam no ar. Mente e livros são seu refúgio e domínio, e as realizações na
erudição e na arte seu motivo de orgulho. Dificilmente existe para esta classe
oportunidade de ação política, de metas políticas. Para ela, o comércio e a
ordem econômica, em conformidade com a estrutura da vida que levam e da
sociedade onde se integram, são interesses marginais.
O comércio, as comunicações e as indústrias são relativamente subdesenvolvidos
e ainda necessitam, na maior parte, de proteção e promoção mediante uma
política mercantilista, e não de libertação de suas restrições. O que legitima
a seus próprios olhos a intelligentsia de classe média do século XVIII, o que
fornece os alicerces à sua autoimagem e orgulho, situa-se além da economia e da
política. Reside no que, exatamente por esta razão, é chamado de das rein
Geistige (o puramente espiritual) em livros, trabalho de erudição, religião,
arte, filosofia, no enriquecimento interno, na formação intelectual (Bildung)
do indivíduo, principalmente através de livros, na personalidade.
[...]
Uma descrição muito esclarecedora da diferença entre esta classe intelectual
alemã e sua contrapartida francesa é também encontrada nas conversas de Goethe
com Eckermann: Ampère chega a Weimar. (Goethe não o conhecia pessoalmente, mas
com frequência o elogiara para Eckermann) Para espanto de todo mundo,
descobre-se que o festejado Monsieur Ampère é “um alegre jovem na casa dos 20
anos”. Eckermann manifesta surpresa e Goethe responde (quinta-feira, 23 de maio
de 1827):
Não tem sido fácil para você em sua terra nativa, e nós no centro da
Alemanha tivemos que pagar muito caro pela pouca sabedoria que possuímos. Isto
porque, no fundo, levamos uma vida isolada, paupérrima! Pouquíssima cultura nos
chega do próprio povo e todos os nossos homens de talento estão dispersos pelo
país. Um está em Viena, outro em Berlim, um terceiro em Königsberg, o quarto em
Bonn ou Düsseldorf, todos separados entre si por 50 ou 100 milhas, de modo que
é uma raridade o contato pessoal ou uma troca pessoal de ideias. Sinto o que
isto significa quando homens como Alexander von Humboldt passam por aqui e
fazem com que meus estudos progridam mais num único dia do que se eu tivesse
viajado um ano inteiro em meu caminho solitário.
Mas agora imagine uma cidade como Paris, onde as mentes mais notáveis de todo o
reino estão reunidas num único lugar, e em seu intercâmbio, competição e
rivalidade diárias eles se ensinam e se estimulam a prosseguir, onde o melhor
de todas as esferas da natureza e da arte de toda a superfície da terra pode
ser visto em todas as ocasiões. Imagine essa metrópole onde cada ponta que se
transpõe e cada praça que se cruza evocam um grande passado. E em tudo isto não
pense na Paris de uma época monótona e embotada, mas na Paris do século XIX,
onde durante três gerações, graças a homens como Molière, Voltaire e Diderot,
essa riqueza de ideias foi posta em circulação como em nenhuma outra parte de
todo o globo, e compreenderá que uma boa mente como a de Ampère, tendo se
desenvolvido em meio a tal abundância, pode muito bem chegar a ser alguma coisa
no seu 24o ano de vida.
[...]
Na França, a conversa é um dos mais importantes meios de comunicação e, além
disso, há séculos é uma arte; na Alemanha, o meio de comunicação mais
importante é o livro, e é uma língua escrita unificada, e não uma falada, que
essa classe intelectual desenvolve. Na França, até os jovens vivem em um
ambiente de rica e estimulante intelectualidade; mas o jovem membro da classe
média alemã tem que subir a muito custo em relativa solidão e isolamento.
Civilização como máquina automática em constante reforma
No seu Ami des hommes, argumenta Mirabeau em certa altura que a superabundância
de dinheiro reduz a população, de modo que aumenta o consumo por indivíduo.
Acha que esse excesso de dinheiro, caso se torne grande demais, “expulsa a
indústria e as artes, lançando, desta maneira, os Estados na pobreza e no
despovoamento”. E continua: “À vista disto, notamos como o ciclo de barbárie a
decadência, passando pela civilização e a riqueza, poderia ser invertido por um
ministro alerta e hábil, e nova corda seria dada à máquina antes que ela
parasse.”28 Esta frase realmente sumaria tudo o que se tornaria característico,
em termos muito gerais, do ponto de vista fundamental dos fisiocratas: a
concepção de economia, população e, finalmente, costumes como um todo
inter-relacionado, desenvolvendo-se ciclicamente; e a tendência política
reformista que dirige finalmente este conhecimento aos governantes, a fim de
capacitá-los, pela compreensão dessas leis, a orientar os processos sociais de
uma maneira mais esclarecida e racional do que até então.
[...]
A crítica de Mirabeau, nobre proprietário de terras, à riqueza, ao luxo, e a
todos os costumes vigentes dá uma coloração especial a suas ideias. A
verdadeira civilização, pensa, situa-se em um ciclo entre a barbárie e a falsa
civilização, “decadente”, gerada pela superabundância de dinheiro. A missão do
governo esclarecido é dirigir este automatismo, de modo que a sociedade possa
florescer em um curso médio entre a barbárie e a decadência. Aqui, toda a faixa
de problemas latentes em “civilização” já é discernível no momento da formação
do conceito. Já nessa fase ela está ligada à ideia de decadência ou “declínio”,
que reemerge repetidamente, em forma visível ou velada segundo o ritmo das
crises cíclicas. Mas podemos também ver claramente que este desejo de reforma
permanece sem exceção dentro do contexto do sistema social vigente, manipulado
de cima, e que não opõe, ao que critica nos costumes do tempo, uma imagem ou
conceito absolutamente novos, mas, em vez disso, parte da ordem existente,
desejando melhorá-la: através de medidas hábeis e esclarecidas tomadas pelo
governo, a “falsa civilização” mais uma vez se tornará boa e autêntica.
[...]
Nesses mesmos anos, a palavra civilisation surge pela primeira vez como um
conceito amplamente usado e mais ou menos preciso. Na primeira edição da
Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des
Européens dans les deux Indes (1770), do padre Raynal, a palavra não ocorre nem
uma única vez; na segunda (1774), ela é “usada frequentemente e sem a menor
variação de significado como termo indispensável e geralmente entendido”.30
No Système de la nature, de Holbach, publicado em 1770, não aparece a palavra
civilisation. Mas no seu Système sociale, editado em 1774, ela é usada com
frequência. Diz ele, por exemplo: “Nada há que oponha mais obstáculos no
caminho da felicidade pública, do progresso da razão humana, de toda a
civilização dos homens do que as guerras contínuas para as quais príncipes
estouvados são atraídos a cada momento.”31 Ou, em outro trecho: “A razão humana
não é ainda suficientemente exercitada; a civilização dos povos não se
completou ainda; obstáculos inumeráveis se opuseram até agora ao progresso do
conhecimento útil, cujo avanço só poderá contribuir para o aperfeiçoamento de
nosso governo, nossas leis, nossa educação, nossas instituições e nossa
moral.”32
O conceito subjacente a esse movimento esclarecido de reforma, socialmente
crítico, é sempre o mesmo: que o aprimoramento das instituições, da educação e
da lei será realizado pelo aumento dos conhecimentos. Isto não significa
“erudição” no sentido alemão do século XVIII, porquanto os que aqui se
expressam não são professores universitários, mas escritores, funcionários,
intelectuais, cidadãos refinados dos mais diversos tipos, unidos através do
medium da “boa sociedade”, os salons. O progresso será obtido, por conseguinte,
em primeiro lugar pela ilustração dos reis e governantes em conformidade com a
“razão” ou a “natureza”, o que vem a ser a mesma coisa, e em seguida pela
nomeação, para os principais cargos, de homens esclarecidos (isto é,
reformistas). Certo aspecto desse processo progressista total passou a ser
designado por um conceito fixo: civilisation. O que era visível na versão
individual que Mirabeau tinha do conceito, o que não fora ainda polido pela
sociedade, e que era característico de todos os movimentos de reforma, era
encontrado também aqui: uma meia afirmação e uma meia negação da ordem vigente.
A sociedade, deste ponto de vista, atingira uma fase particular na rota para a
civilização. Mas era insuficiente. Não podia ficar parada nesse ponto. O
processo continuava e devia ser levado adiante: “a civilização dos povos ainda
não se completou.” Duas ideias se fundem no conceito de civilização. Por um
lado, ela constitui um contraconceito geral a outro estágio da sociedade, a
barbárie. Este sentimento há muito permeava a sociedade de corte. Encontrara
sua expressão aristocrática de corte em termos como politesse e civilité.
Mas os povos não estão ainda suficientemente civilizados, dizem os homens do
movimento de reforma de corte/classe média. A civilização não é apenas um
estado, mas um processo que deve prosseguir. Este é o novo elemento manifesto
no termo civilisation. Ele absorve muito do que sempre fez a corte acreditar
ser — em comparação com os que vivem de maneira mais simples, mais incivilizada
ou mais bárbara — um tipo mais elevado de sociedade: a ideia de um padrão de
moral e costumes, isto é, tato social, consideração pelo próximo, e numerosos
complexos semelhantes. Nas mãos da classe média em ascensão, na boca dos
membros do movimento reformista, é ampliada a ideia sobre o que é necessário
para tornar civilizada uma sociedade. O processo de civilização do Estado, a
Constituição, a educação e, por conseguinte, os segmentos mais numerosos da
população, a eliminação de tudo o que era ainda bárbaro ou irracional nas
condições vigentes, fossem as penalidades legais, as restrições de classe à
burguesia ou as barreiras que impediam o desenvolvimento do comércio — este
processo civilizador devia seguir-se ao refinamento de maneiras e à pacificação
interna do país pelos reis.
Ruderia
Erasmo fala, por exemplo, da maneira como as pessoas olham.
[...]
A postura, os gestos, o vestuário, as expressões faciais — este comportamento
“externo” de que cuida o tratado é a manifestação do homem interior, inteiro.
Erasmo sabe disso e, vez por outra, o declara explicitamente: “Embora este
decoro corporal externo proceda de uma mente bem-constituída não obstante
descobrimos às vezes que, por falta de instrução, essa graça falta em homens
excelentes e cultos.” Não deve haver meleca nas narinas, diz ele mais adiante.
O camponês enxuga o nariz no boné ou no casaco e o fabricante de salsichas no
braço ou no cotovelo. Ninguém demonstra decoro usando a mão e, em seguida,
enxugando-a na roupa. É mais decente pegar o catarro em um pano,
preferivelmente se afastando dos circunstantes. Se, quando o indivíduo se assoa
com dois dedos, alguma coisa cai no chão, ele deve pisá-la imediatamente com o
pé. O mesmo se aplica ao escarro.
Com o mesmo infinito cuidado e naturalidade com que essas coisas são ditas — a
mera menção das quais choca o homem “civilizado” de um estágio posterior, mas
de diferente formação afetiva — somos ensinados a como sentar ou cumprimentar
alguém. São descritos gestos que se tornaram estranhos para nós, como, por
exemplo, ficar de pé sobre uma perna só. E bem que caberia pensar que muitos
dos movimentos estranhos de caminhantes e dançarinos que vemos em pinturas ou
estátuas medievais não representam apenas o “jeito” do pintor ou escultor, mas
preservam também gestos e movimentos reais que se tornaram estranhos para nós,
materializações de uma estrutura mental e emocional diferente.
[...]
Conforme já mencionado, os pratos são também raros. Quadros mostrando cenas de
mesa dessa época ou anterior sempre retratam o mesmo espetáculo, estranho para
nós, que é indicado no tratado de Erasmo. A mesa é às vezes forrada com ricos
tecidos, às vezes não, mas sempre são poucas as coisas que nela há: recipientes
para beber, saleiro, facas, colheres, e só. Às vezes, vemos fatias de pão, as
quadrae, que em francês são chamadas de tranchoir ou tailloir. Todos, do rei e
rainha ao camponês e sua mulher, comem com as mãos. Na classe alta há maneiras
mais refinadas de fazer isso, Deve-se lavar as mãos antes de uma refeição, diz
Erasmo. Mas não há ainda sabonete para esse fim. Geralmente, o conviva estende
as mãos e o pajem derrama água sobre elas. A água é às vezes levemente
perfumada com camomila ou rosmaninho.5 Na boa sociedade, ninguém põe ambas as
mãos na travessa. É mais refinado usar apenas três dedos de uma mão. Este é um
dos sinais de distinção que separa a classe alta da baixa.
Os dedos ficam engordurados. “Digitos unctos vel ore praelingere vel ad tunicam
extergere… incivile est”, diz Erasmo. Não é polido lambê-los ou enxugá-los no
casaco. Frequentemente se oferece aos outros o copo ou todos bebem na caneca
comum. Mas Erasmo adverte: “Enxugue a boca antes.” Você talvez queira oferecer
a alguém de quem gosta a carne que está comendo. “Evite isso”, diz Erasmo. “Não
é muito decoroso oferecer a alguém alguma coisa semimastigada.” E acrescenta:
“Mergulhar no molho o pão que mordeu é comportar-se como um camponês e
demonstra pouca elegância retirar da boca a comida mastigada e recolocá-la na
quadra. Se não consegue engolir o alimento, vire-se discretamente e cuspa-o em
algum lugar.”
[...]
Diversoria trata das diferenças entre as maneiras observadas em estalagens
alemãs e francesas. Descreve, por exemplo, o interior de uma estalagem alemã:
cerca de 80 ou 90 pessoas estão sentadas, salientando o autor que não são
apenas pessoas comuns, mas também homens ricos, nobres, homens, mulheres, e
crianças, todos juntos. E cada um está fazendo o que julga necessário. Um lava
as roupas e pendura as peças molhadas em cima do forno. Outro lava as mãos. Mas
a tigela é tão limpa, diz o autor, que a pessoa precisa de outra para se limpar
da água… É forte o cheiro de alho e outros odores desagradáveis. Pessoas
escarram por toda parte. Alguém está limpando as botas em cima da mesa. Em
seguida, a refeição é trazida. Todos molham o pão na travessa, mordem, e
molham-no novamente. O lugar é sujo e ruim o vinho. Se alguém pede vinho
melhor, o estalajadeiro responde: já hospedei muitos nobres e condes. Se o
vinho não lhe serve, procure outras acomodações.
[...]
Com a mesma simplicidade e clareza com que ele e Della Casa discutem questões,
tais como maior tato e decoro, Erasmo diz também: não se mova para a frente e
para trás na cadeira. Quem faz isso “speciem habet subinde ventris flatum
emittentis ant emittere conantis” (dá a impressão de constantemente soltar ou
tentar soltar ventosidades intestinais).
[...]
É contra o bom-tom segurar a faca ou a colher com toda mão, como se fosse
um porrete: segure-as sempre com os dedos.
Conduta
A tendência cada vez maior das pessoas de se observarem e aos demais é um dos
sinais de que toda a questão do comportamento estava, nessa ocasião, assumindo
um novo caráter: as pessoas se moldavam às outras mais deliberadamente do que
na Idade Média.
Dizia-se a elas: façam isto, não façam aquilo. Mas de modo geral muita coisa
era tolerada. Durante séculos, aproximadamente as mesmas regras, elementares
segundo nossos padrões, foram repetidas, obviamente sem criar hábitos firmes.
Neste momento, a situação muda. Aumenta a coação exercida por uma pessoa sobre
a outra e a exigência de “bom comportamento” é colocada mais enfaticamente.
Todos os problemas ligados a comportamento assumem nova importância. O fato de
que Erasmo tenha reunido em um trabalho em prosa regras de conduta que haviam
sido transmitidas principalmente em versos mnemônicos ou espalhadas em tratados
sobre outros assuntos, e que tenha pela primeira vez dedicado um livro inteiro
à questão do comportamento em sociedade, e não apenas à mesa, é um claro sinal
da crescente importância do tema, como também o foi o sucesso do livro.35 E o
aparecimento de trabalhos semelhantes, como o Cortesão, de Castiglione, ou o
Galateo, de Della Casa, para citar apenas os mais conhecidos, aponta na mesma
direção. Os processos sociais subjacentes já foram indicados e serão discutidos
adiante em mais detalhes: os velhos laços sociais estão, se não quebrados, pelo
menos muito frouxos e em processo de transformação. Indivíduos de diferentes
origens sociais são reunidos de cambulhada. Acelera-se a circulação social de
grupos e indivíduos que sobem e descem na sociedade.
Em seguida, lentamente, durante o século XVI, mais cedo aqui, mais tarde ali e
em quase toda parte com numerosos reveses até bem dentro do século XVII, uma
hierarquia social mais rígida começa a se firmar mais uma vez e, de elementos
de origens sociais diversas, forma-se uma nova classe superior, uma nova
aristocracia. Exatamente por esta razão, a questão de bom comportamento
uniforme torna-se cada vez mais candente, especialmente porque a estrutura
alterada da nova classe alta expõe cada indivíduo de seus membros, em uma
extensão sem precedentes, às pressões dos demais e do controle social. E é
neste contexto que surgem os trabalhos de Erasmo. Castiglione, Della Casa e
outros autores sobre as boas maneiras. Forçadas a viver de uma nova maneira em
sociedade, as pessoas tornam-se mais sensíveis às pressões das outras. Não
bruscamente, mas bem devagar, o código do comportamento torna-se mais rigoroso
e aumenta o grau de consideração esperado dos demais. O senso do que fazer e
não fazer para não ofender ou chocar os outros torna-se mais sutil e, em
conjunto com as novas relações de poder, o imperativo social de não ofender os
semelhantes torna-se mais estrito, em comparação com a fase precedente. As
regras de courtoisie prescreviam também “Nada diga que possa provocar conflito
ou irritar os outros”: Non dicas verbum cuiquam quot ei sit acerbum.36
[...]
A regra de não estalar os lábios quando se come é também encontrada com
frequência em instruções medievais. Sua ocorrência no início do livro, porém,
mostra claramente o que mudou. Demonstra não só quanta importância é nesse
momento atribuída ao “bom comportamento”, mas, acima de tudo, como aumentou a
pressão que as pessoas exercem reciprocamente umas sobre as outras. Torna-se
imediatamente claro que esta maneira polida, extremamente gentil e
relativamente atenciosa de corrigir alguém, sobretudo quando exercida por um
superior, é um meio muito mais forte de controle social, muito mais eficaz para
inculcar hábitos duradouros do que o insulto, a zombaria ou ameaça de violência
física.
Nos diversos países formam-se sociedades pacificadas. O velho código de
comportamento é transformado, mas apenas de maneira muito gradual. O controle
social, no entanto, torna-se mais imperativo. E, acima de tudo, lentamente muda
a natureza e o mecanismo do controle das emoções. Na Idade Média, o padrão de
boas e más maneiras, a despeito de todas as disparidades regionais e sociais,
evidentemente não mudou de qualquer forma decisiva. Repetidamente, ao longo dos
séculos, as mesmas boas e más maneiras são mencionadas. O código social só
conseguiu consolidar hábitos duradouros numa quantidade limitada de pessoas.
Nesse momento, com a transformação estrutural da sociedade, com o novo modelo
de relações humanas, ocorre, devagar, uma mudança: aumenta a compulsão de
policiar o próprio comportamento. Em conjunto com isto é posto em movimento o
modelo de comportamento.
[...]
8. Não é tarefa das mais fáceis tornar esse movimento bem visível, sobretudo
porque ele ocorre com grande lentidão — em passos bem pequenos, por assim dizer
— e porque nele acontecem também múltiplas flutuações, seguindo curvas mais
curtas ou mais longas. É evidente que não basta estudar isoladamente cada única
fase a qual esta ou aquela declaração sobre costumes e maneiras se refere.
Temos que tentar enfocar o próprio movimento, ou pelo menos um grande segmento
dele, como um todo, como se acelerado. Imagens devem ser postas juntas em uma
série, a fim de nos proporcionar uma visão geral, de um aspecto particular, do
processo que se desenrola: a transformação gradual de comportamento e emoções,
o patamar, que se alarga, da aversão.
[...]
o movimento deve ser estudado em toda a sua polifonia de muitas camadas, não
como uma linha, mas como uma espécie de fuga, com uma sucessão de
movimentos-motifs semelhantes, em níveis diferentes.
[...]
Cabe à pessoa de mais alta posição no grupo desdobrar primeiro seu guardanapo e
os demais devem esperar até que ele o faça, antes de abrirem os seus. Quando as
pessoas são aproximadamente iguais, todas devem desdobrá-los juntas sem
cerimônia. [N.B. Com a “democratização” da sociedade e da família isto se
tornou a regra. A estrutura social, neste caso ainda do tipo
hierárquico-aristocrático, reflete-se na mais elementar das relações humanas.]É
errado usar o guardanapo para enxugar o rosto, e mais ainda limpar os dentes
com ele, e seria uma das mais graves infrações da civilidade usá-lo para se
assoar… O emprego que pode e deve dar ao guardanapo é o de enxugar a boca,
lábios, e dedos quando estiverem engordurados, limpar a faca antes de cortar o
pão e fazer o mesmo com a colher e o garfo depois de usá-los. [N.B. Este é um
dos muitos exemplos do extraordinário controle do comportamento concretizados
em nossos hábitos à mesa. O emprego de cada utensílio é limitado e definido por
grande número de regras bem precisas. Nenhuma delas é evidente por si mesma,
como pareceram a gerações posteriores. Seu uso foi desenvolvido aos poucos em
conjunto com a estrutura e mudanças nas relações humanas.]
Dinâmica
A proibição não é nem de longe tão autoevidente como hoje. Vemos como, aos
poucos, transforma-se em um hábito internalizado, em parte do “autocontrole”.
As mudanças no padrão são muito instrutivas (Exemplo K, abaixo). Em alguns
aspectos são muito extensas. A diferença já se constata no que não mais precisa
ser dito. Muitos capítulos tornam-se menores. Muitas “más maneiras” antes
discutidas em detalhe merecem apenas uma referência de passagem. O mesmo se
aplica a numerosas funções corporais anteriormente comentadas em grande
extensão e minúcia. O tom é em geral menos suave e, não raro, muito mais duro
do que na primeira versão.
[...]
Ouvimos pessoas de diferentes épocas falando mais ou menos sobre o mesmo
assunto. Desta maneira, as mudanças se tornaram mais claras do que se as
tivéssemos descrito em nossas próprias palavras. Pelo menos do século XVI em
diante, as injunções e proibições pelas quais é modelado o indivíduo (de
conformidade com o padrão observado na sociedade) estão em movimento
ininterrupto. Este movimento, por certo, não é perfeitamente retilíneo, mas,
através de todas as suas flutuações e curvas individuais, uma tendência global
clara é apesar de tudo perceptível, se estas vozes dos séculos passados são
ouvidas em conjunto.
Os tratados do século XVI sobre as boas maneiras são obra da nova aristocracia
de corte, que está se aglutinando aos poucos a partir de elementos de várias
origens sociais. Com ela surge um diferente código de comportamento.
De Courtin, na segunda metade do século XVII, fala a partir de uma sociedade de
corte que é a mais plenamente consolidada — a da corte de Luís XIV. E se dirige
principalmente a pessoas de categoria, pessoas que não vivem diretamente na
corte, mas que desejam conhecer bem as maneiras e costumes que nela têm curso.
Afirma ele no prefácio: “Este tratado não se destina à impressão, mas apenas a
atender ao cavalheiro de província que solicitou ao autor, como amigo
particular seu, que ministrasse alguns preceitos de civilidade ao seu filho,
que ele tencionava enviar à corte quando completasse seus estudos… Ele (o
autor) empreendeu este trabalho apenas para conhecimento de gentes
bem-nascidas; apenas a elas é dirigido; e particularmente à juventude, que
poderá encontrar alguma utilidade nestes pequenos conselhos, já que nem todos
têm a oportunidade nem dispõem de meios para virem à corte, em Paris, aprender
os refinamentos da polidez.”
Pessoas que vivem ou fazem parte do círculo que dá exemplo não precisam de
livros para saber como “alguém” deve se comportar. Isto é óbvio. Por isso é
importante descobrir com que intenções e para que público esses preceitos são
escritos e publicados — preceitos que originariamente são o segredo distintivo
dos fechados círculos da aristocracia de corte.
Escalada das boas maneiras como forma de manutenção da distinção social:
O público visado é muito claro. Enfatiza-se que os conselhos são apenas para as
honnêtes gens, isto é, de modo geral, gente da classe alta. Em primeiro lugar,
o livro atende à necessidade da nobreza provinciana de se informar sobre o
comportamento na corte e, além disso, à de estrangeiros ilustres. Mas pode-se
supor que o sucesso apreciável deste livro resultou, entre outras coisas, do
interesse despertado nos principais estratos burgueses. Há muito material que
demonstra como, nesse período, os costumes, comportamento e modas da corte
espraiavam-se ininterruptamente pelas classes médias altas, onde eram imitados
e mais ou menos alterados de acordo com as diferentes situações sociais. Perdem
assim, dessa maneira e até certo ponto, seu caráter como meio de identificação
da classe alta. São, de certa forma, desvalorizados. Este fato obriga os que
estão acima a se esmerarem em mais refinamentos e aprimoramento da conduta. E é
desse mecanismo o desenvolvimento de costumes de corte, sua difusão para baixo,
sua leve deformação social, sua desvalorização como sinais de distinção — que o
movimento constante nos padrões de comportamento na classe alta recebe em parte
sua motivação. O importante é que nessa mudança, nas invenções e modas do
comportamento na corte, que à primeira vista talvez pareçam caóticas e
acidentais, com o passar do tempo emergem certas direções ou linhas de
desenvolvimento. Elas incluem, por exemplo, o que pode ser descrito como o
avanço do patamar do embaraço e da vergonha sob a forma de “refinamento” ou
como “civilização”. Um dinamismo social específico desencadeia outro de
natureza psicológica, que manifesta suas próprias lealdades.
Tecnologia:
Estes são apenas alguns exemplos de como se formou nosso ritual diário. Se esta
série fosse continuada até o presente, outras mudanças de detalhe seriam
notadas: novos imperativos são acrescentados, relaxam-se outros antigos, emerge
uma riqueza de variações nacionais e sociais, e se constata a infiltração na
classe média, na classe operária e no campesinato do ritual uniforme da
civilização. A regulação dos impulsos que sua aquisição requer varia muito em
força. Mas a base essencial do que é obrigatório e do que é proibido na
sociedade civilizada — o padrão da técnica de comer, a maneira de usar faca,
garfo, colher, prato individual, guardanapo e outros utensílios — estes
permanecem imutáveis em seus aspectos essenciais. Até mesmo o surgimento da
tecnologia em todas as áreas — inclusive na da cozinha —, com a introdução de
novas formas de energia, deixou virtualmente inalteradas as técnicas à mesa e
outras formas de comportamento. Só com uma verificação muito minuciosa é que
observamos os traços de uma tendência que continua a desenvolver-se.
O que muda ainda, acima de tudo, é a tecnologia da produção. Já a tecnologia do
consumo foi desenvolvida por formações sociais que eram, em um grau nunca
igualado antes, classes de consumo. Com seu declínio social, o rápido e intenso
refinamento das técnicas de consumo cessa, estas passam ao que se torna então a
esfera privada da vida (em contraste com a ocupacional). Consequentemente, o
ritmo de movimento e mudança nessas esferas, que havia sido relativamente
rápido durante o estágio das cortes absolutas, reduz-se mais uma vez.
Forma da curva: