Skip to content
Snippets Groups Projects
Unverified Commit c95c09a0 authored by rhatto's avatar rhatto
Browse files

Books: filosofia: metodo: split notes into volumes

parent cdf59571
No related branches found
No related tags found
No related merge requests found
...@@ -8,1183 +8,7 @@ ...@@ -8,1183 +8,7 @@
[[!toc levels=4]] [[!toc levels=4]]
## Volume I * [Volume I](1).
* [Volume II](2).
### Geral * [Volume III](3).
* [Volume IV](4).
* Complexidade: circuito de complementaridade, concorrência e antagonismo de termos irredutíveis.
* Método, originalmente caminhada, 36.
* Jogo, 111.
* Simples, homologia e equivalência, 181.
* Sistema: o conceito complexo mais simples, 187.
* Poíesis, 200.
* Mumford e a máquina faraônica de 100 mil homens-vapor, 211.
* Máquinas artificiais como incompletas: a mais organizacionalmente enferma, 214-215.
### Ordem e racionalidade clássica
O universo de fogo, substituindo o antigo universo de gelo,
faz soprar o vento da loucura na racionalidade clássica,
que ligava em si as ideias de simplicidade, funcionalidade
e economia. O calor ainda comporta agitação, dispersão,
ou seja, perda, despesa, dilapidação, hemorragia.
A despesa era ignorada onde reinava a ordem soberana. Esta
significava, ao contrário, economia. A economia cósmica,
física e política se fundava em uma lei geral do menor esforço,
do menor atalho de um ponto a outro, do menor custo de uma
transformação a outra. A verdade de uma teoria ainda se julga
por seu caráter econômico com relação a seus rivais, mais
dispendiosos em conceitos, postulados, teoremas.
-- 111-112
### Vida
A vida, acaba-se de ver, é a emanação da organização viva;
não é a organização viva que é a emanação de um princípio vital.
-- 138
### Dependência entre sistemas
Há neste encadeamento sobreposição, confusão, superposição de
sistemas e há, na necessária dependência de um em relação aos
outros.
-- 128
### Simplexidade: a complexidade necessária da pragmática
Numa segunda releitura da parte inicial d'O Método, confrontei minha noção de
simplexidade, ou complexidade necessária com o conceito de complexidade
moriniano.
Há aí, à primeira vista, um óbvio antagonismo de pontos de vista: o simples,
reducionista, seria visto em oposição ao complexo, irredutível.
O que ocorre, de fato, é que ambas as conceituações são complementares ao
prestarmos atenção à qualidade *necessária* da noção de simplexidade, que
nada mais é do que o estabelecimento de um nível de complexidade de entendimento
e uso do conhecimento para determinado fim. É necessário porque pragmático,
por exemplo para fins didáticos.
Por quê o simples é sedutor? Pela sua facilidade. A pragmática reducionista
levou a ciência a várias revoluções. Sua sistemática facilitou enormemente
a pesquisa em ciência normal. Mas pode, como Morin aponta n'O Método,
circunscrever o conhecimento apenas naquilo que pode ser restringido a
conceitos simples e irredutíveis, o que cada vez mais se torna impossível:
O pensamento racionalista comporta um aspecto de racionalização demente
em sua ocultação do gasto absurdo.
-- 111
Não se pode, então, confundir a pragmática de um nível de entendimento da
complexidade necessária da natureza como sendo a natureza de fato. No
uso da simplexidade, "travamos" temporariamente a espiral de conhecimento
para que dele possamos fazer um uso prático usando o que consideramos
conceitualmente mais importante, mais essencial em detrimento do desnecessário
e desimportante.
Nisto, vale a formulação de Malatesta em seu texto A Organização II:
Antes de mais nada, há uma objeção, por assim dizer, formal. “Mas de
que partido nos falais? Dizem-nos, nem sequer somos um, não temos um programa”.
Este paradoxo significa que as idéias progridem, evoluem continuamente,
e que eles não podem aceitar um programa fixo, talvez válido hoje, mas
que estará com certeza ultrapassado amanhã.
Seria perfeitamente justo se se tratasse de estudantes que procuram a verdade,
sem se preocuparem com as aplicações práticas. Um matemático, um quí-
mico, um psicólogo, um sociólogo podem dizer que não há outro programa senão
o de procurar a verdade: eles querem conhecer, mas sem fazer alguma coisa.
Mas a anarquia e o socialismo não são ciências: são proposições, projetos que os
anarquistas e os socialistas querem por em prática e que, conseqüentemente,
precisam ser formulados como programas determinados. A ciência e a arte das
construções progridem a cada dia. Mas um engenheiro, que quer construir ou
mesmo demolir, deve fazer seu plano, reunir seus meios de ação e agir como se
a ciência e a arte tivessem parado no ponto em que as encontrou no início de
seu trabalho. Pode acontecer, felizmente, que ele possa utilizar novas aquisições
feitas durante seu trabalho sem renunciar à parte essencial de seu plano. Pode
acontecer do mesmo modo que as novas descobertas e os novos meios industriais
sejam tais que ele se veja na obrigação de abandonar tudo e recomeçar do
zero. Mas ao recomeçar, precisará fazer novo plano, com base no conhecimento e
na experiência; não poderá conceber e por-se a executar uma construção amorfa,
com materiais não produzidos, a pretexto que amanhã a ciência poderia sugerir
melhores formas e a indústria fornecer materiais de melhor composição.
Entendemos por partido anarquista o conjunto daqueles que querem contribuir
para realizar a anarquia, e que, por conseqüência, precisam fixar um objetivo a
alcançar e um caminho a percorrer. Deixamos de bom grado às suas elucubrações
transcendentais os amadores da verdade absoluta e de progresso contínuo, que,
jamais colocando suas idéias à prova, acabam por nada fazer ou descobrir.
https://ayrtonbecalle.files.wordpress.com/2014/03/errico-malatesta-a-organizac3a7c3a3o-ii.pdf
A simplexidade é justamente o reconhecimento do paradoxo que Malatesta coloca
entre a evolução contínua das ideias e a necessidade do aqui e agora de uma
escolha prática para a organização.
Assim, minha brincadeira com Morin consiste em negar o reducionismo no próprio
conceito de simplicidade: em contraponto ao simples como irredutível, busco o
simples não-simples, o simples complexo, a complexidade do simples e a
simplicidade do complexo: antagonistas e complementares.
Saber quando e como se utilizar de determinados níveis de complexidade para a
construção de entendimentos é uma arte.
A simplificação pode ajudar a andar porém pode cegar da maioria das coisas que
existem e acontecem. Já a complexificação pode dificultar escolhas mas pode
abrir horizontes de compreensão.
Há também uma ligação fundamental entre simplexidade e bem viver.
A complexidade não é complicação. O que é complicado pode se reduzir a um princípio
simples como um emaranhado ou um nó cego. Certamente o mundo é muito complicado, mas
se ele fosse apenas complicado, ou seja, emaranhado, multidependente, etc., bastaria
operar as reduçõe sbem conhecidas [...] O verdadeiro problema, portanto, não
é devolver a complicação dos desenvolvimentos a regras de base simples. A complexidade
está na base.
[...]
O simples é apenas um momento arbitrátrio de abstração arrancado das complexidades,
um instrumento eficaz de manipulação laminando um complexo.
-- 456
### Finalidade e causalidade
O erro é não apenas reduzir o universo da vida, do homem, da sociedade ao das
máquinas artificiais, é também redurzir o unoiverso das máquinas artificiais às
máquinas artificiais. O erro está na recionalização cibernética que só quer ou
só pode ver no ser vivo e no ser social uma máqiuna lubrificada e funcional que
pde para ser mais lubrificada e mais funcionalizada para sempre. Tal
racionalização finalitária se torna simétrica à antiga causalidade elementar,
pois, como esta, ela expulsa a incerteza e a complexidade. O erro é o mesmo do
pensamento tecnocrático que fez da máquina o eídolon de toda vida, o novo
ídolo, a rainha do mundo robotizado! A finalidade é certamente uma emergência
cibernética da vida, mas ela emerge na complexidade. Que seja no nível do
organismo, do indivíduo da reprodução da espécie, do ecossistema, da sociedade,
a ideia de finalidade deve ser simultaneamente integrada e relativizada, ou
seja, complexificada. É uma noção que não é nem clara, ne distinta, mas
pestanejante. A complexidade a desmultiplica, mas também a escurece. Os
objetivos práticos, as operações funcionais, são claros e evidentes, mas eles
se engrenam nas finalidades cada ve menos claras e menos evidentes...
-- 325
A dialógica, as dialéticas endo-exocausais têm um caráter aleatório. Quer dizer
que a causalidade complexa comporta um princípio de incerteza: nem o passado nem
o futuro podem ser inferidos diretamente do presente (Maruyama, 1974). Não pode
mais haver nem explicação segura do passado nem futurologia arrogante: pode-se,
deve-se construir cenários possíveis e improváveis para o passado e para o futuro.
É preciso compreender que mesmo a causalidade pode ter um efeito ínfimo, ou,
pelo contrário, devido às retroações amplificadoras, desestruturadoras,
morfogenéticas que ela desencadeará, ser como uma avalanche durante séculos e
séculos.
-- 329
### Informacionalização
Como a informação é cada vez mais captada pelo inimigo, que se tornando cada
vez mais inteligente, como o inimigo extrai de nossos traços marcas, odores,
etc., informações para nos situar, então se desenvolvem conjuntamente a
camuflagem, o engodo, a esperteza e a arte de detectar a camuflagem, o engodo e
a esperteza. A informação se torna agora equívoca e ambivalente: ela adverte e
trai; ela informa eventualmente aquele que não deve informar: o inimigo, o
concorrente. Grande "progresso" na história da vida: a entrada da enganação na
comunicação. De agora em diante, a vitória não pertence mais somente à força e
ao endereço, mas também à esperteza, depois à mentira (homo sapiens). A mentira
humana, ao se sociologizar, ao se ideologizar, desdobra-se, frutifica, triunfa,
já que ela está ornada das virtudes da verdade. Quanto mais o universo for
informacionalizado, mais ele será assim, até que a saturação de mentira e de
hipocrisia desencadeie uma inversão da tendência, como eu quero esperar.
-- 404
Todo o poder de Estado dispõe do poder programador/ordenador sobre a sociedade
(poder de regular, legislar, deretar), do poder estratégico (elaborar e decidir
as políticas a seguir) e do poder de comando/controle. O Estado dito
"totalitário" vai mais longe: ele concentra em si a memória oficial (o poder de
escrever a História do passado e de ditar a história do presente), o controle
de todos os meios de expressão e de comunicação da informação: o monopólio do
saber verídico pelo menos no que diz respeito à sociologia e à política,
eventualmente em matéria de ciência e de artes; o controle direto de todos os
aparelhos econômicos e outros.
[...]
A idéia-chave que o poder está na produção deve ser lida e compreendida não no
sentido restrito, economista do termo produção, mas no seu sentido
organizacionista/informacional. Não é o poder sobre os "meios" de produção, é
o poder sobre a produção da produção, ou seja, a generatividade social: não é
apenas a propriedade das coisas, dos bens: o domínio está no domínio dos meios
de domínio; a dominação dos meios de dominação; o controle dos meios de
controle: o poder informacional do aparelho.
Vê-se aqui a justeza e o erro de Marx. Marx buscava o que era gerador na
sociedade, e é com uma retidão admirável que ele priorizou, antropologicamente,
a noção de ser genérico, e, sociologicamente, a noção de produção. Mas o único
fundamento que oferecia a física da época era de natureza energética: o
trabalho; da mesma forma, ele vira na sociedade o poder de classe, não o poder
do aparelho.
Ora, a teoria do Aparelho genofenomenal da uma Sociedade concebida como
organização informacional/comunicacional pode apenas renovar e enriquecer o
problema sociológico da dominação e do poder. Ela nos leva a detectar o
problema-chave da monopolização da informação. O pode é monopolizado assim que
um aparelho liga diretamente o poder ao saber (quem reina detém a verdade), o
bastão de comando ao cetro, o sagrado ao político, e por isso uma casta ou uma
classe de aparelho monopoliza as formas múltiplas de informação. A exploração e
a dominação coincidem com a relegação dos explorados e dominados às tarefas
puramente energéticas de execução, com a sua exclusão da esfera
generativa/programadora. Eles só têm direito aos sinais informando-os do que
eles devem fazer, pensar, esperar, sonhar.
-- 418 - 419
## Volume II
* Ecologia da ação, complexidade das ações e incerteza das consequências, 100.
### Simplicidade e complexidade
É a procura de uma simplicidade elementar que nos conduz a uma complexidade
fundamental.
-- 128
### Vida: necessidade do genona
A generalidade produz e mantém processos organizadores que são, fisicamente,
improváveis. A generatividade física (seres organizadores de si) é sempre
espontânea, isto é, não dispõe de aparelho informacional para controlá-la
ou programá-la. Os seres vivos se desintegrariam se dependessem apenas das
regulações físicas, químicas, termodinâmicas espontâneas. A generatividade
biológica (seres auto-organizadores) comporta, necessariamente, agenciamento
genético e informação hereditária.
-- 136
Assim como a fetichização do capital econômico impede que as outras dimensões
da vida social tomem forma, a fetichização do capital genético impede que as
múltiplas dimensões da auto-organização tomem forma.
Assim, sob o duplo efeito da redução química e da coisificação informática, o
gene é isolado, hipostasiado. Apesar e por causa dos progressos da genética e
da biologia molecular o paradigma de simplificação pesa no sentido de um
subdiscurso vulgarizador, de caráter atomizador (que situa o fundamento
organizacional do ser vivo na unidade de base, isto é, na molécula, na
informação, no gene), mecanística (que reduz a lógica da organização viva à
máquina artificial), coisificador (que substancializa a informação/programa). O
subdiscurso, larvar na genética torna-se o discurso "genetista" propriamente
dito e, desenvolvendo-se sem entraves, transforma-se em mito pangenetista.
Assim, a incapacidade para conceber a unidade complexa do genos e do fenon na
auto-organização transforma o gene em gênio e o DNS em Adonai.
-- 155
### Misc
O ego-autocentrismo parece invulnerável. O indivíduo não pode agir senão para
si e para os seus. Como tudo aquilo que é invulnerável, o ego-autocentrismo tem
seu ponto vulnerável, não no calcanhar, mas na cabeça, ou melhor dizendo, na
computação. O ponto forte de todo o ser computante, que é extrair informação
do seu universo, é também o seu ponto fraco: a possibilidade de erro. A
computação pode enganar-se nos seus cálculos, ou tratar uma informação
enganadora. Assim, todo o indivíduo pode tornar-se o instrumento da sua própria
perda enquanto julga trabalhar para a sua salvação.
O ser computante pode até ser despossuído do seu próprio ego-autocentrismo,
como no caso da célula parasitada por um vírus, o qual, fazendo-a executar o
seu programa de reprodução, a faz agir para a sua própria destruição e para a
multiplicação do seu assassino. Os humanos tornaram-se mestres na sujeição dos
animais que, embora conservem a autonomia cerebral, isto é, o
ego-autocentrismo, estão de fato subjugados às finalidades dos subjugadores e
sobretudo tornaram-se mestres na sujeição do homem pelo homem, como já
indicamos.
-- 197, 198
### A discriminação cognitiva de "si"
"Se algum organismo não se conhece a si próprio, como pode detectar a
presença de alguma coisa estranha?" (Vaz e Varela, 1978)
-- 181
Ou, analogamente, se um organismo parasse de se reconhecer, seu sistema imunológico
poderia atacar a si mesmo.
### Computo ergo sum
* Computação, "com-puter": examinar, avaliar, estimar supor ("puter") em cojunto, ligando ou confrontando aquilo que está separado, separando ou dissociando aquilo que está ligado ("com") (183).
* Autos: idem e ipse (196).
* Princípio de exclusão: identificação do si e do não-si.
* Vida: auto-computante: computa a si mesma.
* Si: referência corporal objetiva (213), corporalidade (214).
* Eu: auto-referência subjetiva do ser vivo (190), afirmação egocêntrica (213).
* Mim: auto-referência objetiva do ser vivo (190), referência objetiva do eu e referência subjetiva do si (213).
Trechos:
O cogito começa a aparece como um anel espiral.
-- 202
Ora, evidentemente, as demonstrações "idealistas" que desprendem o sujeito da
órbita física e do mundo das coisas não são de modo algum comprobatórias. Em
geral, o cogito é insuficiente como prova científica ou lógica para dizer
alguma coisa sobre a natureza material ou imaterial do mim, sobre a sua
realidade transcendental ou fenomênica. Toda a busca de prova, deste domínio,
necessita da comunicação do cogitante com o universo exterior e da
intercomunicação dos cogitantes entre eles. Ora, o cogito funda-se
exclusivamente na autocomunicação do sujeito consigo mesmo e a sua validade
concerne, exclusivamente, a qualidade de sujeito. E é precisamente esse caráter
de autocomunicação que, embora constitua o seu limite, constitui a riqueza do
cogito, pensamento recorrente em ação, gerando e regenerando o seu próprio
começo, a sua própria origem, produzindo nesse mesmo processo sua unidade
complexa e as suas qualidades emergentes, que são aqui as qualidades próprias
do sujeito consciente.
--- 204, 205
O computo não "pensa" de modo ideal, isto é, isolável. "Pensa" (computa) de
modo organizacional. O computo concerne o "eu sou", não no plano da consciência
ou da representação, mas no plano da produção/geração/organização. Não existe
certamente constituição de sujeito consciente ao nível da "Escherichia coli".
Mas, talvez, constituição do sujeito puro e simples no e pelo "computo".
-- 207
Como Piaget indicou, freqüentemente a organização do conhecimento humano
constitui um desenvolvimento original da organização biológica e, por
conseguinte, "existem funções gerais comuns aos mecanismos orgânicos e
cognitivos" (Piaget, 1967, p. 206). Neste sentido, "o funcionamento cerebral
exprime ou prolonga formas muito gerais e não particulares de organização
(biológica)" (Piaget, 1967, p. 545). Podemos pois dizer que, "numa certa
profundidade, a organização vital e a organização mental constituem apenas uma
única e mesma coissa" (Piaget, 1968, p. 467). Podemos portanto ir ainda mais
longe e considerar que todo o ato de organização viva comporta uma dimensão
cognitiva.
[...]
Assinalar um fenômeno de conhecimento no ser celular aparece decerto como uma
verdadeira projeção retrospectiva do indiferenciado. Mas esta projeção pode
justificar sua necessidade: seria absurdo negar a atividade cognitiva num ser
que apresenta suas condições (aparelho computante) e os seus resultados
(distinção do si/não-si, extração de informações do universo exterior, etc.). A
idéia de que a auto-organização viva comporta uma dimensão cognitiva dá sentido
e coerência ao conjunto dos dados relativos à organização celular. Mas, ao
mesmo tempo, traz um aparente não-sentido à idéia de conhecimento, uma vez que
trata de um conhecimento que não se conhece a si mesmo. Schelling dizia: "A
vida é um saber que ignora a si mesmo...".
-- 207, 208
A partir daí, o paradoxo do conhecimento que não se conhece agrava-se: como
pode haver autoconhecimento para um conhecimento que não se conhece?
[...]
Estaríamos inteiramente desarmados diante do problema do autoconhecimento se
não tivéssemos já reconhecido a auto-referência no âmago de todos os processos
celulares e de informação (portanto de autoinformação), de comunicação
(portanto de autocomunicação), de computação (portanto de autocomputação).
Significa, ao mesmo tempo, que o circuito auto-referente de si a si faz
regressar o computado ao computador; sendo o computado também o computador, o
computado-computador regressa à computação do computador. Trata-se de um
circuito autocognitivo no qual o computador está apto não só para computar-se
na parte por intermédio do todo, no todo por intermédio das partes, mas também
para objetivar-se como computado (si, mim) e ressubjetivar-se como computador
(eu).
-- 209
Devemos também supor que esses termos [...] são como que instâncias
referenciais que fazem circular a reflexão de um ponto de vista a outro, cada
uma das quais permite ao sujeito reconhecer ou afirmar um dos seus rostos.
-- 213
Já vimos aquilo que separa uma computação cerebral que só gera representações e
uma computação celular que gera a vida. O computo celular produz o ser objetivo
e, ao mesmo tempo, a modalidade subjetiva do ser. É o operador do circuito no
qual, simultaneamente, o ser e a modalidade subjetiva do ser se geram e se
regeneram, permanentemente.
-- 214
Temos que entender radical, fundamental, plenamente: computo ergo sum. Computo
não significa "tenho um computador na minha máquina". Não significa apenas "sou
um ser computante". Significa "eu computo, logo eu sou".
-- 216
### Existencialismo
Turnover molecular, turbilhão computante (221, dentre outras).
Jogo, erro e morte (217), a tragédia básica da existência e a solidão comunicante (218):
Assim, a autou-afirmação individual do indivíduo-sujeito é a de um ator que
joga o jogo de viver para ganhar a vida. A noção de ator é existencial no
sentido em que o ator se joga a si mesmo -- joga a sua vida -- na busca, no
esforço, no perigo no seio do "teatro" natural que é o seu ambiente. A condição
existencial do jogo marca toda a vida: é a natureza sempre renascente e a luta
sempre renascente contra a incerteza.
O ator vivo mais modesto dispõe, para jogar o seu jogo, do seu capital de
informações hereditárias e do computo egocêntrico que lhe permite transformar a
informação em programa, extrair informações do mundo exterior, agir em função
da situação. mas o computo comporta a sua brecha de incerteza: o risco de erro.
Toda a existência viva traz consigo o risco permanente de error (no
funcionamento auto-organizador, na percepção do mundo exterior, na escolha ou
na decisão, na estratégia do comportamento) e todo o risco de erro traz consigo
o risco e morte.
[...]
Como vimos, a morte não é o inimigo mortal da vida (porque, sem deixar de ser
desintegrante, está integrada nas transformações e regenerações da vida). Mas é
inimiga mortal do indivíduo-sujeito.
-- 217
Toda a existência que joga é, simultaneamente, jogada e joguete. [...] O
estatuto do objetivo é incerto, improvável, aleatório, perecível, mas este
indivíduo, por improvável e pouco necessária que seja a sua vinda ao mundo, por
inexoravelmente mortal que ele seja, torna-se, logo que nasce e se forma, um
ser absolutamente necessário "para si" e tende a viver a todo custo,
indefinidamente. Aí reside a tragédia da existência viva. O indivíduo é um
quantum de existência, efêmero, descontínuo, pontual, um "ser-lançado-no-mundo"
entre ex nihilo (nascimento) e in nihilo (morte) e é ao mesmo tempo um sujeito
que se autotranscende acima do mundo. Para ele, é o centro do universo. Para o
universo, não passa de um vestígio corpuscular, um estremecimento de onda. Para
ele é sujeito, para o universo é objeto. É a sua própria necessidade, embora
tenha nascido por acaso, viva no acaso e morra no acaso. Nasceu no meio de
milhões de sementes inutilizadas, dilapidadas, volatilizadas, formou-se num
mistério de agregação, de epigenetização, de animação, que, do nada, produziu
este instante periférico que se julga o umbigo do mundo.
[...]
O ser vivo, por constituição, está destinado à solidão existencial. Produz e
mantém a sua membrana-fronteira. Opera a cisão ontológica entre si e não-si. A
sua computação está numa câmara escura, e as informações que extrai são
traduções.
[...]
A solidão, a separação, a incerteza constituem as condições prévias e
necessárias da comunicação. Só os solitários podem e devem comunicar.
-- 218
O computo tem o papel vital e fundamental de traduzir acontecimentos em
informações a computar por e para si. A partir daí, surge um problema que se
tornará permanente e agudo na existência animal: como evitar o erro, como
induzir em erro o adversário, o inimigo?
[...]
Como veremos cada vez mais claramente, a afetividade é a consequência, não a
origem, da existência subjetiva.
[...]
A relação entre recepção de estímulos exteriores (a bactéria dispõe de
químico-receptores) e o computo abre a porta à sensibilidade. A partir daí,
tudo aquilo que acontece de nefasto ou benéfico é não só computado como "bom"
ou "mau" (para si), mas também pode ser sentido como irritante ou apaziguante.
As sensibilidades e irritabilidades progridem com o desenvolvimento dos
receptores sensoriais e das redes nervosas.
-- 219
### O Sujeito
Sujeito (220):
* Esqueleto lógico-organizacional e carne ontológico-existencial.
* Lógico: auto-referência, distribuidor de valores.
* Organizacional: conceito inerente e necessário à auto-(geno-feno-eco)-organização.
* Ontológico: sua afirmação individual egocêntrica é inerente e necessária à definição do ser vivo.
* Existencial: cada um dos seus traços constitutivos comporta uma dimensão existencial.
Trechos:
O sujeito, repito, não é uma substância, uma essência, uma forma.
É uma qualidade de ser [...]
--- 221
Assim, podemos ver que a qualidade de sujeito não é um epifenômeno ou uma
superestrutura da individualidade viva, mas uma infra-estrutura que permite
inscrever muito profundamente o indivíduo e o genos um no outro. Com efeito,
não é apenas a mensagem genética que é necessária à constituição do sujeito.
É a estrutura reprodutora que é indispensável à estrutura do sujeito, ao menos
na esfera originárias e fundamental do unicelular. Reciprocamente, não é
apenas a existência de um indivíduo que é necessária à reprodução genética.
É a estrutura primeira do sujeito que é indispensável à estrutura reprodutora
primeira.
--- 223
Marx dizia que a chave da autonomia do macado reside na autonomia do homem.
Entendia com isso que o desenvolvimento, no homem, de qualidades potenciais
ou embrionárias no macaco, permitia perceber aquilo que seria invisível
se tivéssemos considerado o macaco isoladamente da evolução pela qual o
metamorfoseou em homem. Em outras palavras, o ulterior permite conceber o
anterior. Temos, pois, de prolongar a fórmula marxiana relativa ao macaco pela
proposição contrária mas complementar, e pela conjugação em anel destas duas
proposições [...] Em outras palavras, a chave de ambos está no movimento
e confrontação initerrupto produtor de hipóteses e de teorias.
-- 224
### Comunicação, redes e o outro (alteridade)
* Egoísmo e altruísmo, 232.
Trechos:
A faculdade de computar o outro como alter ego/ego alter é sem dúvida
inseparável da faculdade de se computar a si "objetivamente" como um outro
si-mesmo (alter ego) e de identificar este alter ego com a sua própria
identidade subjetiva. [...] A comunicação entre congêneres exterioriza,
num outro semelhante a si, os processos internos de objetivação/subjetivação,
proteção/identificação. Constitui-se, entre os dois parceiros, de modo
recíproco, um circuito de proteção (de si sobre o outro) e de identificação
(do outro consigo).
-- 228
Assim, o anel que encerra o sujeito sobre si mesmo abre-lhe ao mesmo tempo a
possibilidade de comunicar-se com outrem.
-- 229
### Estratégia e inteligência
Veremos cada vez melhor que as noções de arte, estratégia, inteligência,
bricolagem (estratégia organizadora de um novo objeto por conversão de antigos
objetos ou elementos da sua finalidade ou função) são intercomunicantes.
[...]
Quando programa tende a comandar, diminuir, suprimir as estratégias, a
obediência mecânica e míope torna-se modelo de comportamento. À escala humana,
a estratégia necessita de lucidez na elaboração e na conduta, jogo de
iniciativas e de responsabilidades, pleno emprego das competências individuais,
isto é, pleno emprego das qualidades do sujeito. Eis por que, entre
parênteses, o Método aqui procurado nunca será um programa, isto é, uma receita
preestabelecida, mas um convite e uma incitação à estratégia do pensamento.
-- 257
### Liberdade
* Definição, 258.
* Suicídio, 259.
### Sociedades: entidades de terceiro tipo
Não existe fronteira bem nítida entre as associações mais ou menos frouxas e as
sociedades rudimentares. Mas o que importa aqui é definir um fenômeno não na
sua fronteira incerta, mas na sua emergência própria. O fenômeno social emerge
quando as interações entre os indivíduos do segundo tipo produzem um todo
não-redutível aos indivíduos e que retroage sobre ele, isto é, quando se
constitui um sistema. Existe, portanto, sociedade quando as interações
comunicadoras/associativas constituem um todo organizado/organizador, que é
precisamente a sociedade, a qual, como toda a entidade de natureza sistêmica, é
dotada de qualidades emergentes e, com as suas qualidades, retroage enquanto
todo sobre os indivíduos, transformando-os em membros desta sociedade.
-- 264
O sistema social não é apenas um sistema: é uma organização que organiza
retroativamente a produção e a reprodução das interações que a produzem,
assegura a sua homeostasia através do turnover dos indivíduos que morrem e
nascem e, assim, continua a ser um ser-máquina autoprodutor e auto-organizador.
-- 265
### Totalitarismo
Um novo e enorme poder de Estado tende a concentrar-se ao longo do século XX.
O Estado torna-se cada vez mais Estado-providência e Estado assistencial
(Welfare state). Num sentido, dedica-se cada vez mais à proteção e ao
bem-estar dos indivíduos, mas, ao mesmo tempo, estende as suas competências a
todos os domínios das vidas individuais, doravante encerradas numa rede
polimórfica, simultaneamente casulo (protetor mas eventualmente infantilizante)
e armadilha. Assim, desenvolve-se um Estado, de certo não totalitário, mas
totalizante, isto é, englobando todas as dimensões da existência humana.
Os notáveis desenvolvimentos informáticos, de que hoje se discutem as
ambivalências (Nora, Minc, 1978), deixam entrever espantosas possibilidades de
desconcentração comunicacionais e de que beneficiariam os indivíduos. Mas, ao
mesmo tempo, a informática dá a um aparelho de Estado central a possibilidade
de agrupar e tratar todas as informações acerca de um indivíduo de modo muito
mais ramificado e preciso que o controle neurocerebral sobre as células dos
nossos organismos. A partir daí, um código policial/tecnológico (munido de
dispositivos de detecção e de escuta em todos os terrenos) pode doravante
exercer-se sobre o desvio, anomalia, originalidade. A isto é necessário
acrescentar já as futuras ações bioquímicas sobre o espírito ----- cérebro
humano, que permitirão estabelecer uma normalização generalizada de todo o
desvio. Doravante, o Estado encontra-se dotado de poderes que, virtualmente,
excedem todos os poderes de controle e de intervenção jamais concentrados.
Aqui mesmo, temos de inscrever o processo aparentemente marginal,
sociologicamente menor, que já constatei (Método I): o conhecimento científico
produz-se cada vez menos para ser pensado e meditado por espíritos humanos, mas
cada vez mais acumulado para a computação dos seus computadores, isto é, para a
utilização das entidades superindividuais, em primeiro lugar a entidade
supercompetente e onipresente: o Estado. Ao mesmo tempo e correlativamente,
essa ciência cega-nos: o resto do nosso mundo, da nossa sociedade, do nosso
destino é despedaçado por um conhecimento científico que, atualmente, ainda é
incapaz de pensar o indivíduo, incapaz de conceber a noção de sujeito, incapaz
de pensar a natureza da sociedade, incapaz de elaborar um pensamento que não
seja unicamente matematizado, formalizado, simplificador, mas, ao contrário,
muito capaz de fornecer aos poderes novas técnicas de controle, de manipulação,
de opressão, de terror, de destruição.
Ao aproximarmo-nos, pois, do momento em que podemos considerar que todos estes
processos conjuntos poderiam permitir ao ser do terceiro tipo realizar-se em
onipotência, não só sujeitando-nos e manipulando-nos, mas também
infantilizando-nos, irresponsabilizando-nos e despossuindo-nos da aspiração ao
conhecimento e do direito ao juízo.
Tal hipótese não é brincadeira intelectual, pois o Estado dedicado a essa
realização surgiu no século XX: o Estado totalitário. Instala-se, sob diversas
variantes, em todos os continentes, em todas as civilizações, em todas as
sociedades, sob o impulso, o controle, a apropriação de um aparelho soberano: o
partido detentor de todas as competências, possuidor de verdade sobre o homem,
a história, a natureza.
A partir daí, bastaria que este Estado totalitário concentrasse e utilizasse de
modo sistemático todas as formas de dominação/controle, não só burocráticas,
policiais, militares, mitológicas, políticas, mas também científicas, técnicas,
informáticas, bioquímicas, para que se pudesse operar uma sujeição das classes,
grupos, indivíduos, já não apenas generalizada mas irreversível; regressões dos
direitos individuais já não são apenas generalizadas mas irreversíveis.
Podemos, certamente, esperar que nossos totalitarismos contemporâneos sejam os
monstros provisórios nascidos das agonias e gestações deste século. Mas podemos
recear também que estes monstros se tornem duradouros na e pela
sujeição/controle estrutural dos indivíduos do segundo tipo e, por isso,
constituam os artesãos de um desenvolvimento decisivo do ser do terceiro tipo.
-- 281, 282
### Autos
Autos significa "o mesmo": não identidade consigo mesmo fundada numa
invariância estáica, não identidade de dois termos distintos e semelhantes, mas
unidade de um anel que, girando incessantemente do mesmo ao si mesmo, produz e
reproduz o mesmo.
O autos pertence à raça dos anéis turbilhonares. Um ciclo genérico de
reproduções faz suceder os vivos aos vivos. Um turnover fenomênico faz suceder
as moléculas às moléculas, as células às células (se policelular), os
indivíduos aos indivíduos (sociedade). Assim como um turbilhão desenha uma
figura estável no seio do fluxo, igualmente, e ainda mais, o dinamismo
turbilhonar do autos produz, a partir de uma inscrição genética invariante,
formas corporais aparentemente estáticas (células, organismos, sociedades) e
aparece desenhar no tempo um esquema ou pattern fixo. Aqui reencontramos o
vínculo pseudo-antinômico entre o movimento irreversível e o estado
estacionário, dinamismo e a estabilidade, já bem elucidado (O Método !).
-- 287
O princípio de integração próprio de autos é, portanto, um princípio
polianelante complexo que permite construir, simultaneamente, vários graus de
auto-organização, de individualidade, de ser, de existência. Uma propriedade
notável destas integrações mútuas é que as relações de pertença não anulam as
relações de exclusão: cada ser permanece, no seu grau, um indivíduo-sujeito
egocêntrico, embora "pertença" a um mega-ser, ele mesmo egocêntrico, de que é
uma parte ínfima e enferma.
De onde as consequências perturbadoras para a ontologia tradicional: embora os
seres-sujeitos se excluam uns aos outros do seu lugar egocêntrico, podem,
contudo, constituir vários seres em um, um ser em vários e, ao mesmo tempo,
fragmentos de mega-seres.
-- 290
### Hierarquia e especialização
* Problemas e vulnerabilidades da estrutura em rede centralista/hierárquica/especializada: 359.
Trechos:
A hierarquia constitui uma estrutura de sujeição, na qual os seres celulares
estão sujeitos aos indivíduos policelulares, sujeitos Pas sociedades de que
fazem parte. Os seres sujeitados continuam sujeitos, mas na ignorância (e, no
caso dos humanos, na inconsciência), trabalham para os fins dos sujeitos que os
sujeitam.
Mesmo quando há arquitetura de emergências, a organização hierárquica comporta
uma certa alienação do sujeito (que trabalha para os outros trabalhando para si)
e uma virtualidade de subjugação e de exploração (remeto para as definições
dadas na primeira parte). É, efetivamente, a partir do controle e da dominação:
do baixo pelo alto, da parte pelo todo, do micro pelo macro, dos executantes
pelos componentes, dos informados pelos informantes, que se estabelecem as
relações de exploração infra-organizacional. E de fato, as "altas" formas
globais (do organismo, da sociedade) mantêm-se e perduram no e pelo turnover
das "baixas" formas, ou seja, vivem de mortes/renascimentos initerruptos dos
indivíduos celulares, verdadeiro fluxo regenerador que mantém a permanência,
a estabilidade, a sobrevivência do indivíduo sujeitante.
-- 350-351
A organização recorrente relativiza a noção de hierarquia, uma vez que a
hierarquia depende, na sua própria existência, daquilo que depende dela.
Temos de ir mais longe e reconhecer que, em toda a organização viva, a
organização hierárquica precisa de organização não-hierárquica.
[...]
A anarquia não é a não-organização, é a organização que se efetua a partir
das associações-interações sinérgicas entre seres computantes, sem que,
para tal, haja necessidade de comando ou controle emanando dum nível
superior. É assim que se constituem as eco-organizações. Ora esta anarquia
sem controle superior constitui um todo que estabelece seu controle superior.
-- 352
Enfim, o parasitismo desenvolve-se no seio das organizações
cêntricas/hierárquicas/especializadas do nosso universo antropossocial. Com
efeito, o indivíduo ou a casta que detêm o poder de Estado podem saciar sem
freios (não sendo controlados pela regra que controlam) os seus apetites
egocêntricos e parasitar o conjunto do corpo social, assumindo mais ou menos
corretamente as suas funções de interesse geral.
-- 359
Toda a concepção ideal de uma organização que seria apenas ordem,
funcionalidade, harmonia, coerência é um sonho demente de ideólogo ou/e de
tecnocrata. A irracionalidade que elminaria a desordem, a incerteza, o erro não
é senão a irracionalidade que eliminaria a vida.
-- 365
Parece que toda a passagem de um micronível de organização a um macroniível,
como do unicelular ao ser policelular, da sociedade arcaica de algumas centenas
de membros à sociedade histórica de milhões de indivíduos, a complexidade da
nova macroorganização é menor do que a da microorganização que intefra ou
desintegra. Assim, os primeiros organismos policelulares, de estrutura
demasiado frouxa ou demasiado rígida, não puderam elevar-se até o nível de
complexidade organizacional da célula, e foram necessários unúmeros
desenvolvimentos evolutivos (desenvolvimentos de órgãos e aparelhos internos,
entre os quais o aparelho neurocerebral, o aparelho sexual, etc.) para que
organismos superiores atinjam novos níveis de complexidade.
[...]
Talvez -- talvez? -- toda mudança de escala, todo salto em direção a um
metassistema mais amplo deva apagar-se, num primeiro estádio, com uma pobreza
organizacional, misto de ordem rígida e de desordem destruidora, antes de
aparecerem as estruturas e emergências novas? E, neste sendido, estamos na era
de gênese uraniana de uma organização social que ainda não encontrou a
hipercomplexidade que torna possível a evolução cerebral pelo Homo sapiens (cf.
Morin, 1973, p. 206-209).
Com efeito, parece possível conceber um progresso organizacional baseado na
regressão das especializações, das hierarquias, da centralização -- de onde a
regressão correlativa das subjugações/sujeições --, no desenvolvimento das
comunicações e confraternizações, no pleno emprego das qualidades estratégicas,
inventivas, criativas, ainda totalmente inibidas ou por desbastar na nossa
sociedade.
-- 368-369
### Bios
* Ser vivo gerador de acaso; liberdade, criatividade e eventualidade, 409.
* Autopoiese, 417.
Trechos:
Vimos que, para lá de um certo número de interações e de indeterdependências,
para lá de um certo grau de complicação, se torna impossível calcular e
conhecer os processos de um fenômeno. Niels Bohr formulara-o à sua maneira:
"É impossível efetuar medidas físicas e químicas completas sobre um
organismo sem matá-lo".
-- 421
### Complexidade, lógica e contradição
* Simples, simplicidade, simplificação na ciência, 432.
Trechos:
O pensamento complexo, animado pela dupla exigência de completude (não a
"totalidade", mas a não-mutilação) e de coesão, conduz num determinado momento
a uma brecha lógica: a contradição. Será necessário que um diktat lógico
exterior e abstrato condene a exigência de lógica interior que conduziu à
contradição? Não será antes necessário imaginar que o surgimento da contradição
opera a abertura súbita de uma cratera no discurso sob o impulso das camadas
profundas do real?
-- 425
A lógica aristotélica corresponde à igualdade estática imediata das "coisas",
objetos sólidos como pedra ou mesa, recortados ou isolados no tempo e no
ambiente. O princípio do terceiro excluído e o princípio de identidade
concernem sistemas "fechados", que definimos não só sem referência ao seu
ambiente, mas também sem ter em conta o segundo princípio da termodinâmica, que
constitui um princípio de transformação interna dos sistemas fechados. Assim,
logo que se trata de sistema aberto, e singularmente de vida, "o princípio do
terceiro excluído de identidade define um ser empobrecido, separado entre meio
e indivíduo" (Simondon, 1964, p.17).
Embora insuficientes para caracterizar as entidades complexas, esta lógica
permite-nos arrancar os seres ou objetos à confusão, identificá-los num
primeiro grau, e é necessária às operações seqüenciais do raciocínio
complexo. Repetimos: não só o raciocínio complexo deve ser coerente mas é a
sua própria coerência que conduz às contradições.
Quando o pensamento simplificador encontra uma contradição que não pode ser
superada, volta atrás exclamando "erro'. O pensamento complexo aceita o
desafio das contradições. Não poderia ser, como a dialética, a "superação"
(Aufhebung) das contradições. É a sua desocultação, a sua evidenciação,
e recorre ao corpo-a-corpo com a contradição.
[segue uma bela descrição sobre o surgimento de uma contradição]
Daí em diante importa inverter o modo de pensamento simplificador que,
postulando a adequação absoluta entre a lógica e o real, opera de fato
a redução "idealista" do real à lógica. Temos de reconhecer que real
e lógico não se identificam totalmente.
[...]
Para o conhecimento complexo, a contradição não é somente o sinal de um absurdo
de pensamento. Pode tornar-se o detector de camadas profundas do real.
Constitui então já não o detector do erro e do falso mas o indício e o anúncio
do verdadeiro.
[prossegue com uma bela fala sobre a lógica ilógica do vivo e o enriquecimento
do princípio de incerteza]
[...]
O pensamento não serve à lógica: serve-se dela. O problema é: como servir-se?
-- 427-429
### Complexidade e simplicidade
* Robotização do ser vivo pelo pensamento simplificador, 434.
* Marxismo, sistemismo e simplificação, 435.
Trechos:
A complexidade é a união da simplificação e da complexidade.
[...]
O pensamento complexo deve lutar contra a simplificação, utilizando-a
necessariamente. Existe sempre um duplo jogo no conhecimento complexo:
simplificar ----> complexificar. No duplo jogo, o complexo volta
\ /
---------<--------´
incessantemente como pressão da complexidade real e consciência da
insuficiência dos nossos meios intelectuais diante do real (por isso,
o pensamento complexo é o pensamento modesto que se inclina diante
do impensável).
-- 432-433
O esforço da complexidade é aleatório e difícil. [...] É porque
integra aquilo que desintegra o pensamento que ela vive [a estratégia
do pensamento complexo], como tudo quanto é vivo, à temperatura da
sua própria destruição. [isto é citado novamente na página 438]
[...]
A complexidade é um termo-chave. Mas não é uma palavra dominante.
-- 435
### Viver
* Simmel, 440.
* Simondon, 441.
* Von Neumann, jogo, 446.
* Organ, fervilhar ardentemente, 465.
Trechos:
O ser que nasce não pediu para viver, mas logo que nasce, só pede para viver.
Nenhum vivo quis viver, no entanto, todo o vivo quer viver.
-- 438
A definição de Bichat: "A vida é o conjunto das funções que resistem à morte."
[...]
Atlan formula o princípio complementar e antagônico do princípio de Bichat:
"A vida é o conjunto das funções capazes de utilizar a morte"
(Atlan, 1979, p. 278)
-- 439-440
Ninguém nasce só. Ninguém está só no mundo, no entanto cada um está só
no mundo.
-- 442
Os destinos são diferentes, desiguais, incomensuráveis, que seria absurdo
hierquizá-lo (sic). Mas certamente existem vidas infernais: parasitas,
subjugadas, subdesenvolvidas, atrofiadas...
-- 443
### Manipulação da vida
A ação do homem sobre a vida começou desde a pré-história por domesticação,
sujeição, subjugação, e prosseguiu como manipulação através de hibridações
e cruzamentos. A manipulação alcança hoje o santuário dos genes.
[...]
Por um lado, há um ganho potencial de complexidade por elevação da produção
industrial do nível do artefato ao da organização viva. Existe redução
potencial do ser vivo ao estatuto do artefato e praticamente transformação
dos seres vivos em máquinas artificiais (já a criação industrial dos
porcinos e bovinos os transforma em puras e simples máquinas de fazer carne).
Assim, a progressão do industrial tornado vivo corre o risco de ser uma
regressão da vida, que vai se tornando industrial, tornando-se a
bioindústria o prolongamento tecnossociológico da manipulação experimental
que trata os seres celulares e pluricelulares como agrupamentos de
peças soltas.
Mais profunda e amplamente, está aberta a porta para a manipulação ilimitada
sobre a vida. Encontramo-nos no momento de uma tomada de poder decisiva.
Podemos imaginar, como me indica Gaston Richard, que os microorganismos
podem efetuar todas as operações naturais necessárias à nossa vida, inclusive
a fotossíntese, tornando assim obsoletas a nossa preocupação de preservar
ecossistemas: de onde a possibilidade de liquidação geral de todas as
espécies vegetais ou animais, deixando frente a frente, no Planeta Terra,
o homo e a Escherichia coli.
[...]
O novo poder sobre a vida será tão fundamentalmente controlador e tão
fundamentalmente incontrolador quanto foi a tomada de poder sobre a energia
atômica há quarenta anos. E concerne, mais íntima e fundamentalmente ainda, o
poder sobre o homem.
-- 469-470
## Volume III
* Arqui-racionalidade, 59.
* Simplificar <-> complexificar, 72-73.
* Techne, 196.
* Gênio, 204.
* Tomada de consciência, 212.
* Auto-análise, 216 (mas não só nessa página).
* Idealismo: tomar a idéia pelo real, 248.
* Racionalização: encerrar o real num sistema coerente, 248.
* Auto-engano (self-deception), 249.
### Paradoxo essencial do cérebro-espírito
O que é um espírito que pode conceber o cérebro que o produz, e o que é um
cérebro que pode produzir um espírito que o concebe?
-- 84
### Princípio hologramático, holográfico
Daí a riqueza das organizações hologramáticas:
a) as partes podem ser singulares ou originais, embora dispondo de aspectos
gerais e genéricos da organização do todo;
b) as partes podem ser dotadas de autonomia relativa;
c) podem estabelecer comunicações entre elas e realizar trocas organizadoras;
d) podem ser eventualmente capazes de regenerar o todo;
No universo vivo, o princípio hologramático é o princípio essencial das
organizações policelulares, vegetais e animais; cada célula permanece singular,
justamente porque, controlada pela organização do todo (ela mesma produzida
pelas interações entre células), uma pequena parte da informação genética nela
contida se exprime; mas ela permanece ao mesmo tempo portadora das
virtualidades do todo, o que poderia, eventualmente, atualizar-se a partir
delas; assim, seria possível reproduzir por clonagem o ser inteiro a partir de
uma célula mesmo extremamente especializada ou periférica do organismo.
-- 115
### Concepção: dialógica da analógica <-> lógica (digital)
As analogias organizadoras permitem a formação de homologias que suscitam
princípios organizadores. O raciocínio por analogia faz logo parte do caminho
que leva à modelização e à formalização, mas sob a condição de obedecer à
dialógica do analógico, do lógico e do empírico, ou seja, ao controle da
verificação dedutiva e da verificação empírica. Assim, constitui-se uma onte do
concreto ao abstrato e do abstrato ao concreto através da qual se tece e se
cria a __concepção__, insto é, um novo modo de organizar a experiência e de
imaginar o possível. Em consequência, reencontramos, no próprio procedimento
científico, mas de explícito, razoável e consciente, os métodos de
conhecimentos por isomorfismo, homeomorfismo e homologia que o aparelho
cognitivo utiliza espontânea e inconscientemente no conhecimento perceptivo e
discursivo.
-- 157
A analogica é iniciadora, inovadora (Peirce indicou que a inovação jorra quase
sempre da analogia), inclusive na invenção científica. Alimenta uma ligação
entre concreto e abstrato (via isomorfismos, tipologias, homologias) e entre
imaginário e real (via metáfora). Essas pontes, como já indicamos, estimulam
e provocam a __concepção__, isto é, a formação de novos modos de organização
do conhecimento e do pensamento.
-- 158
### Inteligência artificial
No estádio evolutivo atual, o conhecimento por computador continua um apêndice
operacional do conhecimento humano; ainda não se trata do primeiro modelo de
um conhecimento sobre-humano. Não é proibido imaginar, para o futuro, máquinas
cognoscentes, artificiais no começo, e depois auto-organizativas e dotadas
de individualidade. Mas elas se tornariam então novos seres-sujeito que gozariam
e sofreriam com os seus conhecimentos, produziriam, talvez, os seus próprios
mitos e poderiam então manipular as coisas ou mesmo os seres humanos.
-- 226
### Limites do conhecimento
O problema da caverna permanece. O problema da câmara fechada continua. Mas
sabemos doravante que a caverna nos permite ver sob a forma de sombras o que,
fora, nos cegaria; a câmara fechada, onde o cérebro permanece encerrado,
permite ao espírito abrir-se ao mundo sem se aniquilar.
-- 240
Nessas condições, somos aparentemente conduzidos à definição tradicional da
verdade: a adequação do espírito à coisa. Mas é preciso complexificar:
como a coisa é co-elaborada pelo aparelho cognitivo, vale mais conceber o
conhecimento como adequação de uma organização cognitiva (representação,
idéia, enunciado, discurso, teoria) a uma situação ou organização fenomenal.
Tal adequaçã não é evidentemente a de um "reflexo", mas o fruto de uma
reprodução mental. Tal reprodução não constitui a cópia, mas a _simulação_,
nos modos analógicos/homológicos, dos objeto, situações, fenômenos,
comportamentos, organizações.
Assim, a representação e a teoria podem ser consideradas, cada uma do seu
jeito, como uma reconstituição simuladora, uma concreta/singular, a outra
abstrata/generalizante.
[...]
Em nenhum caso, o conhecimento esgotaria o fenômeno a ser conhecido
e a verdade total, exaustiva ou radical é impossível. Toda pretensão
à totalidade ou ao fundamento resulta em não-verdade.
-- 244
Acrescente-se que a operacionalidade lógica, limitada aos enunciados
segmentados, encontra limite no aparecimento do nó complexo dos problemas e ao
atingir as camadas primordiais da realidade.
[...]
Acabamos pois além do realismo "ingênuo" e do realismo "crítico", além do
idealismo clássico e do criticismo kantiano, num _realismo relacional,
relativo e múltiplo_. A _relacionalidade_ vem da relatividade dos meios
de conhecimento e da relatividade da realidade cognoscível. A multiplicidade
diz respeito à multiplicidade dos níveis de realidade e, talvez, à
multiplicidade das realidades. Segundo esse realismo relativo, relacional
e múltiplo, o mundo fenomenal é real, mas relativamente real, e devemos mesmo
relativizar a nossa noção de realidade admitindo uma irrealidade interna
a ela. Esse realismo reconhece os limites do cognoscível e sabe que o
mistério do real não se esgota de forma alguma no conhecimento.
-- 245
Pensa por ti mesmo, e o método te ajudará.
-- 251
## Volume IV
* Cultura como um megacomputador, 20.
* Pensamento e efervescência culturais na temperatura de sua própria destruição, 98.
### Cultura
Assim, a cultura não é nem "superestrutura" nem "infra-estrutura", termos
impróprios em uma organização recursiva onde o que é produzido e gerado
torna-se produtor e gerador daquilo que o produz ou gera.
[...]
Se a cultura contém um saber coletivo acumulado em memória social, se é
portadora de princípios, modelos, esquemas de conhecimento, se gera uma visão
de mundo, se a linguagem e o mito são partes constitutivas da cultura, então a
_cultura não comporta somente uma dimensão cognitiva: é uma máquina cognitiva
cuja práxis é cognitiva_.
-- 19
Nesse sentido, poder-se-ia dizer metaforicamente que a cultura de uma sociedade
é como uma espécie de megacomputador complexo que memoriza todos os dados
cognitivos e, portadora de quase-programas, prescreve as normas práticas,
éticas, políticas dessa sociedade.
-- 20
### Efervescência cultural
Por um lado, o imprinting, a normalização, a invariância, a reprodução.
Mas, por outro lado, os enfraquecimentos locais do imprinting, as brechas na
normalização, o surgimento de desvios, a evolução dos conhecimentos, as modificações
nas estruturas de reprodução.
[...]
Para tratar desses problemas, é preciso, antes de tudo, perguntar quais são as
possibilidades de enfraquecimento dos três níveis deterministas do _imprinting_
cognitivo (paradigmas, doutrinas, estereótipos), bem como sobre as possibilidades
de falha ou atenuação da normalização.
Em nossa opinião, são os seguintes:
- a existência de vida cultural e intelectual dialógica;
- o "calor" cultural;
- a possibilidade de expressão de desvios.
-- 33
### Conhecimento do conhecimento
Assim, desembocamos em uma situação cognitiva ao mesmo tempo emaranhada e
circular: cada instância (sociologia, ciência, epistemologia) necessita das
outras para conhecer-se e legitimar-se e o círculo que poderia então se
constituir entre essas instâncias, cada uma dependendo da outra e recorrendo à
outra, constituiria então o metaponto de vista ao qual cada uma tentaria
referir-se. Aqui, só estamos no começo da elaboração do _grande anel cujo
circuito produtivo constituiria "o conhecimento do conhecimento_, isto é, o
conjunto complexo e rotativo dos metapontos de vista sobre o conhecimento; mas,
desde já, o anel restrito esboçado aqui nos permite entrever "o grade anel"
epistemológico ("o anel dos anéis").
-- 115
[[!meta title="O Método - Volume I"]]
[[!toc levels=4]]
## Geral
* Complexidade: circuito de complementaridade, concorrência e antagonismo de termos irredutíveis.
* Método, originalmente caminhada, 36.
* Jogo, 111.
* Simples, homologia e equivalência, 181.
* Sistema: o conceito complexo mais simples, 187.
* Poíesis, 200.
* Mumford e a máquina faraônica de 100 mil homens-vapor, 211.
* Máquinas artificiais como incompletas: a mais organizacionalmente enferma, 214-215.
## Ordem e racionalidade clássica
O universo de fogo, substituindo o antigo universo de gelo,
faz soprar o vento da loucura na racionalidade clássica,
que ligava em si as ideias de simplicidade, funcionalidade
e economia. O calor ainda comporta agitação, dispersão,
ou seja, perda, despesa, dilapidação, hemorragia.
A despesa era ignorada onde reinava a ordem soberana. Esta
significava, ao contrário, economia. A economia cósmica,
física e política se fundava em uma lei geral do menor esforço,
do menor atalho de um ponto a outro, do menor custo de uma
transformação a outra. A verdade de uma teoria ainda se julga
por seu caráter econômico com relação a seus rivais, mais
dispendiosos em conceitos, postulados, teoremas.
-- 111-112
## Vida
A vida, acaba-se de ver, é a emanação da organização viva;
não é a organização viva que é a emanação de um princípio vital.
-- 138
## Dependência entre sistemas
Há neste encadeamento sobreposição, confusão, superposição de
sistemas e há, na necessária dependência de um em relação aos
outros.
-- 128
## Simplexidade: a complexidade necessária da pragmática
Numa segunda releitura da parte inicial d'O Método, confrontei minha noção de
simplexidade, ou complexidade necessária com o conceito de complexidade
moriniano.
Há aí, à primeira vista, um óbvio antagonismo de pontos de vista: o simples,
reducionista, seria visto em oposição ao complexo, irredutível.
O que ocorre, de fato, é que ambas as conceituações são complementares ao
prestarmos atenção à qualidade *necessária* da noção de simplexidade, que
nada mais é do que o estabelecimento de um nível de complexidade de entendimento
e uso do conhecimento para determinado fim. É necessário porque pragmático,
por exemplo para fins didáticos.
Por quê o simples é sedutor? Pela sua facilidade. A pragmática reducionista
levou a ciência a várias revoluções. Sua sistemática facilitou enormemente
a pesquisa em ciência normal. Mas pode, como Morin aponta n'O Método,
circunscrever o conhecimento apenas naquilo que pode ser restringido a
conceitos simples e irredutíveis, o que cada vez mais se torna impossível:
O pensamento racionalista comporta um aspecto de racionalização demente
em sua ocultação do gasto absurdo.
-- 111
Não se pode, então, confundir a pragmática de um nível de entendimento da
complexidade necessária da natureza como sendo a natureza de fato. No
uso da simplexidade, "travamos" temporariamente a espiral de conhecimento
para que dele possamos fazer um uso prático usando o que consideramos
conceitualmente mais importante, mais essencial em detrimento do desnecessário
e desimportante.
Nisto, vale a formulação de Malatesta em seu texto A Organização II:
Antes de mais nada, há uma objeção, por assim dizer, formal. “Mas de
que partido nos falais? Dizem-nos, nem sequer somos um, não temos um programa”.
Este paradoxo significa que as idéias progridem, evoluem continuamente,
e que eles não podem aceitar um programa fixo, talvez válido hoje, mas
que estará com certeza ultrapassado amanhã.
Seria perfeitamente justo se se tratasse de estudantes que procuram a verdade,
sem se preocuparem com as aplicações práticas. Um matemático, um quí-
mico, um psicólogo, um sociólogo podem dizer que não há outro programa senão
o de procurar a verdade: eles querem conhecer, mas sem fazer alguma coisa.
Mas a anarquia e o socialismo não são ciências: são proposições, projetos que os
anarquistas e os socialistas querem por em prática e que, conseqüentemente,
precisam ser formulados como programas determinados. A ciência e a arte das
construções progridem a cada dia. Mas um engenheiro, que quer construir ou
mesmo demolir, deve fazer seu plano, reunir seus meios de ação e agir como se
a ciência e a arte tivessem parado no ponto em que as encontrou no início de
seu trabalho. Pode acontecer, felizmente, que ele possa utilizar novas aquisições
feitas durante seu trabalho sem renunciar à parte essencial de seu plano. Pode
acontecer do mesmo modo que as novas descobertas e os novos meios industriais
sejam tais que ele se veja na obrigação de abandonar tudo e recomeçar do
zero. Mas ao recomeçar, precisará fazer novo plano, com base no conhecimento e
na experiência; não poderá conceber e por-se a executar uma construção amorfa,
com materiais não produzidos, a pretexto que amanhã a ciência poderia sugerir
melhores formas e a indústria fornecer materiais de melhor composição.
Entendemos por partido anarquista o conjunto daqueles que querem contribuir
para realizar a anarquia, e que, por conseqüência, precisam fixar um objetivo a
alcançar e um caminho a percorrer. Deixamos de bom grado às suas elucubrações
transcendentais os amadores da verdade absoluta e de progresso contínuo, que,
jamais colocando suas idéias à prova, acabam por nada fazer ou descobrir.
https://ayrtonbecalle.files.wordpress.com/2014/03/errico-malatesta-a-organizac3a7c3a3o-ii.pdf
A simplexidade é justamente o reconhecimento do paradoxo que Malatesta coloca
entre a evolução contínua das ideias e a necessidade do aqui e agora de uma
escolha prática para a organização.
Assim, minha brincadeira com Morin consiste em negar o reducionismo no próprio
conceito de simplicidade: em contraponto ao simples como irredutível, busco o
simples não-simples, o simples complexo, a complexidade do simples e a
simplicidade do complexo: antagonistas e complementares.
Saber quando e como se utilizar de determinados níveis de complexidade para a
construção de entendimentos é uma arte.
A simplificação pode ajudar a andar porém pode cegar da maioria das coisas que
existem e acontecem. Já a complexificação pode dificultar escolhas mas pode
abrir horizontes de compreensão.
Há também uma ligação fundamental entre simplexidade e bem viver.
A complexidade não é complicação. O que é complicado pode se reduzir a um princípio
simples como um emaranhado ou um nó cego. Certamente o mundo é muito complicado, mas
se ele fosse apenas complicado, ou seja, emaranhado, multidependente, etc., bastaria
operar as reduçõe sbem conhecidas [...] O verdadeiro problema, portanto, não
é devolver a complicação dos desenvolvimentos a regras de base simples. A complexidade
está na base.
[...]
O simples é apenas um momento arbitrátrio de abstração arrancado das complexidades,
um instrumento eficaz de manipulação laminando um complexo.
-- 456
## Finalidade e causalidade
O erro é não apenas reduzir o universo da vida, do homem, da sociedade ao das
máquinas artificiais, é também redurzir o unoiverso das máquinas artificiais às
máquinas artificiais. O erro está na recionalização cibernética que só quer ou
só pode ver no ser vivo e no ser social uma máqiuna lubrificada e funcional que
pde para ser mais lubrificada e mais funcionalizada para sempre. Tal
racionalização finalitária se torna simétrica à antiga causalidade elementar,
pois, como esta, ela expulsa a incerteza e a complexidade. O erro é o mesmo do
pensamento tecnocrático que fez da máquina o eídolon de toda vida, o novo
ídolo, a rainha do mundo robotizado! A finalidade é certamente uma emergência
cibernética da vida, mas ela emerge na complexidade. Que seja no nível do
organismo, do indivíduo da reprodução da espécie, do ecossistema, da sociedade,
a ideia de finalidade deve ser simultaneamente integrada e relativizada, ou
seja, complexificada. É uma noção que não é nem clara, ne distinta, mas
pestanejante. A complexidade a desmultiplica, mas também a escurece. Os
objetivos práticos, as operações funcionais, são claros e evidentes, mas eles
se engrenam nas finalidades cada ve menos claras e menos evidentes...
-- 325
A dialógica, as dialéticas endo-exocausais têm um caráter aleatório. Quer dizer
que a causalidade complexa comporta um princípio de incerteza: nem o passado nem
o futuro podem ser inferidos diretamente do presente (Maruyama, 1974). Não pode
mais haver nem explicação segura do passado nem futurologia arrogante: pode-se,
deve-se construir cenários possíveis e improváveis para o passado e para o futuro.
É preciso compreender que mesmo a causalidade pode ter um efeito ínfimo, ou,
pelo contrário, devido às retroações amplificadoras, desestruturadoras,
morfogenéticas que ela desencadeará, ser como uma avalanche durante séculos e
séculos.
-- 329
## Informacionalização
Como a informação é cada vez mais captada pelo inimigo, que se tornando cada
vez mais inteligente, como o inimigo extrai de nossos traços marcas, odores,
etc., informações para nos situar, então se desenvolvem conjuntamente a
camuflagem, o engodo, a esperteza e a arte de detectar a camuflagem, o engodo e
a esperteza. A informação se torna agora equívoca e ambivalente: ela adverte e
trai; ela informa eventualmente aquele que não deve informar: o inimigo, o
concorrente. Grande "progresso" na história da vida: a entrada da enganação na
comunicação. De agora em diante, a vitória não pertence mais somente à força e
ao endereço, mas também à esperteza, depois à mentira (homo sapiens). A mentira
humana, ao se sociologizar, ao se ideologizar, desdobra-se, frutifica, triunfa,
já que ela está ornada das virtudes da verdade. Quanto mais o universo for
informacionalizado, mais ele será assim, até que a saturação de mentira e de
hipocrisia desencadeie uma inversão da tendência, como eu quero esperar.
-- 404
Todo o poder de Estado dispõe do poder programador/ordenador sobre a sociedade
(poder de regular, legislar, deretar), do poder estratégico (elaborar e decidir
as políticas a seguir) e do poder de comando/controle. O Estado dito
"totalitário" vai mais longe: ele concentra em si a memória oficial (o poder de
escrever a História do passado e de ditar a história do presente), o controle
de todos os meios de expressão e de comunicação da informação: o monopólio do
saber verídico pelo menos no que diz respeito à sociologia e à política,
eventualmente em matéria de ciência e de artes; o controle direto de todos os
aparelhos econômicos e outros.
[...]
A idéia-chave que o poder está na produção deve ser lida e compreendida não no
sentido restrito, economista do termo produção, mas no seu sentido
organizacionista/informacional. Não é o poder sobre os "meios" de produção, é
o poder sobre a produção da produção, ou seja, a generatividade social: não é
apenas a propriedade das coisas, dos bens: o domínio está no domínio dos meios
de domínio; a dominação dos meios de dominação; o controle dos meios de
controle: o poder informacional do aparelho.
Vê-se aqui a justeza e o erro de Marx. Marx buscava o que era gerador na
sociedade, e é com uma retidão admirável que ele priorizou, antropologicamente,
a noção de ser genérico, e, sociologicamente, a noção de produção. Mas o único
fundamento que oferecia a física da época era de natureza energética: o
trabalho; da mesma forma, ele vira na sociedade o poder de classe, não o poder
do aparelho.
Ora, a teoria do Aparelho genofenomenal da uma Sociedade concebida como
organização informacional/comunicacional pode apenas renovar e enriquecer o
problema sociológico da dominação e do poder. Ela nos leva a detectar o
problema-chave da monopolização da informação. O pode é monopolizado assim que
um aparelho liga diretamente o poder ao saber (quem reina detém a verdade), o
bastão de comando ao cetro, o sagrado ao político, e por isso uma casta ou uma
classe de aparelho monopoliza as formas múltiplas de informação. A exploração e
a dominação coincidem com a relegação dos explorados e dominados às tarefas
puramente energéticas de execução, com a sua exclusão da esfera
generativa/programadora. Eles só têm direito aos sinais informando-os do que
eles devem fazer, pensar, esperar, sonhar.
-- 418 - 419
This diff is collapsed.
[[!meta title="O Método - Volume III"]]
[[!toc levels=4]]
## Geral
* Arqui-racionalidade, 59.
* Simplificar <-> complexificar, 72-73.
* Techne, 196.
* Gênio, 204.
* Tomada de consciência, 212.
* Auto-análise, 216 (mas não só nessa página).
* Idealismo: tomar a idéia pelo real, 248.
* Racionalização: encerrar o real num sistema coerente, 248.
* Auto-engano (self-deception), 249.
## Paradoxo essencial do cérebro-espírito
O que é um espírito que pode conceber o cérebro que o produz, e o que é um
cérebro que pode produzir um espírito que o concebe?
-- 84
## Princípio hologramático, holográfico
Daí a riqueza das organizações hologramáticas:
a) as partes podem ser singulares ou originais, embora dispondo de aspectos
gerais e genéricos da organização do todo;
b) as partes podem ser dotadas de autonomia relativa;
c) podem estabelecer comunicações entre elas e realizar trocas organizadoras;
d) podem ser eventualmente capazes de regenerar o todo;
No universo vivo, o princípio hologramático é o princípio essencial das
organizações policelulares, vegetais e animais; cada célula permanece singular,
justamente porque, controlada pela organização do todo (ela mesma produzida
pelas interações entre células), uma pequena parte da informação genética nela
contida se exprime; mas ela permanece ao mesmo tempo portadora das
virtualidades do todo, o que poderia, eventualmente, atualizar-se a partir
delas; assim, seria possível reproduzir por clonagem o ser inteiro a partir de
uma célula mesmo extremamente especializada ou periférica do organismo.
-- 115
## Concepção: dialógica da analógica <-> lógica (digital)
As analogias organizadoras permitem a formação de homologias que suscitam
princípios organizadores. O raciocínio por analogia faz logo parte do caminho
que leva à modelização e à formalização, mas sob a condição de obedecer à
dialógica do analógico, do lógico e do empírico, ou seja, ao controle da
verificação dedutiva e da verificação empírica. Assim, constitui-se uma onte do
concreto ao abstrato e do abstrato ao concreto através da qual se tece e se
cria a __concepção__, insto é, um novo modo de organizar a experiência e de
imaginar o possível. Em consequência, reencontramos, no próprio procedimento
científico, mas de explícito, razoável e consciente, os métodos de
conhecimentos por isomorfismo, homeomorfismo e homologia que o aparelho
cognitivo utiliza espontânea e inconscientemente no conhecimento perceptivo e
discursivo.
-- 157
A analogica é iniciadora, inovadora (Peirce indicou que a inovação jorra quase
sempre da analogia), inclusive na invenção científica. Alimenta uma ligação
entre concreto e abstrato (via isomorfismos, tipologias, homologias) e entre
imaginário e real (via metáfora). Essas pontes, como já indicamos, estimulam
e provocam a __concepção__, isto é, a formação de novos modos de organização
do conhecimento e do pensamento.
-- 158
## Inteligência artificial
No estádio evolutivo atual, o conhecimento por computador continua um apêndice
operacional do conhecimento humano; ainda não se trata do primeiro modelo de
um conhecimento sobre-humano. Não é proibido imaginar, para o futuro, máquinas
cognoscentes, artificiais no começo, e depois auto-organizativas e dotadas
de individualidade. Mas elas se tornariam então novos seres-sujeito que gozariam
e sofreriam com os seus conhecimentos, produziriam, talvez, os seus próprios
mitos e poderiam então manipular as coisas ou mesmo os seres humanos.
-- 226
## Limites do conhecimento
O problema da caverna permanece. O problema da câmara fechada continua. Mas
sabemos doravante que a caverna nos permite ver sob a forma de sombras o que,
fora, nos cegaria; a câmara fechada, onde o cérebro permanece encerrado,
permite ao espírito abrir-se ao mundo sem se aniquilar.
-- 240
Nessas condições, somos aparentemente conduzidos à definição tradicional da
verdade: a adequação do espírito à coisa. Mas é preciso complexificar:
como a coisa é co-elaborada pelo aparelho cognitivo, vale mais conceber o
conhecimento como adequação de uma organização cognitiva (representação,
idéia, enunciado, discurso, teoria) a uma situação ou organização fenomenal.
Tal adequaçã não é evidentemente a de um "reflexo", mas o fruto de uma
reprodução mental. Tal reprodução não constitui a cópia, mas a _simulação_,
nos modos analógicos/homológicos, dos objeto, situações, fenômenos,
comportamentos, organizações.
Assim, a representação e a teoria podem ser consideradas, cada uma do seu
jeito, como uma reconstituição simuladora, uma concreta/singular, a outra
abstrata/generalizante.
[...]
Em nenhum caso, o conhecimento esgotaria o fenômeno a ser conhecido
e a verdade total, exaustiva ou radical é impossível. Toda pretensão
à totalidade ou ao fundamento resulta em não-verdade.
-- 244
Acrescente-se que a operacionalidade lógica, limitada aos enunciados
segmentados, encontra limite no aparecimento do nó complexo dos problemas e ao
atingir as camadas primordiais da realidade.
[...]
Acabamos pois além do realismo "ingênuo" e do realismo "crítico", além do
idealismo clássico e do criticismo kantiano, num _realismo relacional,
relativo e múltiplo_. A _relacionalidade_ vem da relatividade dos meios
de conhecimento e da relatividade da realidade cognoscível. A multiplicidade
diz respeito à multiplicidade dos níveis de realidade e, talvez, à
multiplicidade das realidades. Segundo esse realismo relativo, relacional
e múltiplo, o mundo fenomenal é real, mas relativamente real, e devemos mesmo
relativizar a nossa noção de realidade admitindo uma irrealidade interna
a ela. Esse realismo reconhece os limites do cognoscível e sabe que o
mistério do real não se esgota de forma alguma no conhecimento.
-- 245
Pensa por ti mesmo, e o método te ajudará.
-- 251
[[!meta title="O Método - Volume IV"]]
[[!toc levels=4]]
## Geral
* Cultura como um megacomputador, 20.
* Pensamento e efervescência culturais na temperatura de sua própria destruição, 98.
## Cultura
Assim, a cultura não é nem "superestrutura" nem "infra-estrutura", termos
impróprios em uma organização recursiva onde o que é produzido e gerado
torna-se produtor e gerador daquilo que o produz ou gera.
[...]
Se a cultura contém um saber coletivo acumulado em memória social, se é
portadora de princípios, modelos, esquemas de conhecimento, se gera uma visão
de mundo, se a linguagem e o mito são partes constitutivas da cultura, então a
_cultura não comporta somente uma dimensão cognitiva: é uma máquina cognitiva
cuja práxis é cognitiva_.
-- 19
Nesse sentido, poder-se-ia dizer metaforicamente que a cultura de uma sociedade
é como uma espécie de megacomputador complexo que memoriza todos os dados
cognitivos e, portadora de quase-programas, prescreve as normas práticas,
éticas, políticas dessa sociedade.
-- 20
## Efervescência cultural
Por um lado, o imprinting, a normalização, a invariância, a reprodução.
Mas, por outro lado, os enfraquecimentos locais do imprinting, as brechas na
normalização, o surgimento de desvios, a evolução dos conhecimentos, as modificações
nas estruturas de reprodução.
[...]
Para tratar desses problemas, é preciso, antes de tudo, perguntar quais são as
possibilidades de enfraquecimento dos três níveis deterministas do _imprinting_
cognitivo (paradigmas, doutrinas, estereótipos), bem como sobre as possibilidades
de falha ou atenuação da normalização.
Em nossa opinião, são os seguintes:
- a existência de vida cultural e intelectual dialógica;
- o "calor" cultural;
- a possibilidade de expressão de desvios.
-- 33
## Conhecimento do conhecimento
Assim, desembocamos em uma situação cognitiva ao mesmo tempo emaranhada e
circular: cada instância (sociologia, ciência, epistemologia) necessita das
outras para conhecer-se e legitimar-se e o círculo que poderia então se
constituir entre essas instâncias, cada uma dependendo da outra e recorrendo à
outra, constituiria então o metaponto de vista ao qual cada uma tentaria
referir-se. Aqui, só estamos no começo da elaboração do _grande anel cujo
circuito produtivo constituiria "o conhecimento do conhecimento_, isto é, o
conjunto complexo e rotativo dos metapontos de vista sobre o conhecimento; mas,
desde já, o anel restrito esboçado aqui nos permite entrever "o grade anel"
epistemológico ("o anel dos anéis").
-- 115
## O futuro do conhecimento
Além disso, podemos perguntar se, na aurora do novo milênio, o próprio destino do
conhecimento humano não estará sendo novamente posto em jogo.
Retomemos a metáfora do Grande Computador.
Há, nas sociedades modernas e democráticas, uma relação extremamente complexa e
recursiva entre o Grande Computador e os indivíduos; estes não estão apenas
submetidos ao conhecimento próprio à sua cultura, mas são também sujeitos
cognoscíveis, cuja consciência individual está dotada de uma competência de princípio
para examinar idéias, decidir sobre a verdade e julgar problemas éticos correspondentes.
Mas, alguma coisa está modificando-se no próprio modo das interações cognitivas que
tecem as relações sociais. O que chamamos de informática é, na realidade, a primeira
etapa, ainda bárbara e grosseira, de um sistema de computação/informação/comunicação
artificial que poderá revolucionar as relações do espírito com o cérebro, da sociedade
com os seus membros, do Estado com o indivíduo. Já se formam apêndices cerebrais artificiais,
coletivos ou pessoais (os computadores individuais) que dialogam com nossos espíritos,
comunicam-se uns com os outros e articulam-se cada vez mais no tecido social.
Estamos na aurora de um formidável desenvolvimento da cerebralidade artificial em redes e,
nesse sentido, estamos também no alvorecer de uma nova idade do conhecimento.
Os processos em curso são profundamente ambivalentes e as perspectivas de futuro, incertas.
Já vimos (na introdução de _La Méthode_ 1, p. 12-13) o problema do despojamento do direito
individual para integrar e refletir o conhecimento em proveito dos especialistas,
experts e bancos de dados.
Acrescentemos: os desenvolvimentos das redes neurocerebrais artificiais, com seus
desdobramentos previsíveis (novas gerações de computadores "neuronais" aptos eventualmente
a reorganizar as regras dos programas, extensão e generalização do tecido informático
poli-tele-conectado), realizam-se segundo duas vias divergentes:
- uma vai no sentido do desenvolvimento dos poderes individuais do conhecimento (poderes
operacionais, lógicos, heurísticos, acesso às fontes de dados, etc.) e das possibilidades
individuais de expressão, de transmissão, de diálogo;
- a outra vai no sentido do desenvolvimento dos poderes de controle dos indivíduos pelas
administrações e pelo Estado.
Ao mesmo tempo, o progresso no conhecimento bio-químico-físico do cérebro permitirá
a modificiação, via intervenções moleculares ou outras, dos processos mentais.
Daí, ainda uma ambivalência no desenvolvimento desses poderes:
- por um lado, o espírito individual poderia intervir no seu próprio cérebro para
modificar, enriquecer, exaltar os seus estados de consciência.
- por outro lado, um novo poder totalitário poderia subjugar, _via_ manipulações
neurocerebrais, incluindo a interpretação dos dados sensoriais, a provocação ou
inibição das emoções, a elaboração dos projetos para o futuro.
Assim, por um lado, o espírito poderia agir sobre o cérebro para desenvolver-se.
Por outro, a organização social poderia agir sobre o cérebro para controlar o
espírito. Por um lado, abrir-se-ia a possibilidade de dar vida aos "Mozart assassinados".
Por outro, afirmar-se-ia o reino do _Big Brother_.
0% Loading or .
You are about to add 0 people to the discussion. Proceed with caution.
Finish editing this message first!
Please register or to comment