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Jun 13, 2018
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*
Processo civiliza-DOR.
*
Memória, autocontrole, adestramento, custo da civilização para os indivíduos, vide introdução.
*
Controle social, "restrições ao jogo de emoções".
*
O Uso da Faca à Mesa, Do Uso do Garfo à Mesa: ótima dissertação.
*
Hilário: "Mudanças de Atitude em Relação a Funções Corporais", sobre urinar, cagar, peidar publicamente, etc.
### Kultur e Zivilization
...
...
@@ -526,3 +529,496 @@ Escalada das boas maneiras como forma de manutenção da distinção social:
avanço do patamar do embaraço e da vergonha sob a forma de “refinamento” ou
como “civilização”. Um dinamismo social específico desencadeia outro de
natureza psicológica, que manifesta suas próprias lealdades.
Tecnologia:
Estes são apenas alguns exemplos de como se formou nosso ritual diário. Se esta
série fosse continuada até o presente, outras mudanças de detalhe seriam
notadas: novos imperativos são acrescentados, relaxam-se outros antigos, emerge
uma riqueza de variações nacionais e sociais, e se constata a infiltração na
classe média, na classe operária e no campesinato do ritual uniforme da
civilização. A regulação dos impulsos que sua aquisição requer varia muito em
força. Mas a base essencial do que é obrigatório e do que é proibido na
sociedade civilizada — o padrão da técnica de comer, a maneira de usar faca,
garfo, colher, prato individual, guardanapo e outros utensílios — estes
permanecem imutáveis em seus aspectos essenciais. Até mesmo o surgimento da
tecnologia em todas as áreas — inclusive na da cozinha —, com a introdução de
novas formas de energia, deixou virtualmente inalteradas as técnicas à mesa e
outras formas de comportamento. Só com uma verificação muito minuciosa é que
observamos os traços de uma tendência que continua a desenvolver-se.
O que muda ainda, acima de tudo, é a tecnologia da produção. Já a tecnologia do
consumo foi desenvolvida por formações sociais que eram, em um grau nunca
igualado antes, classes de consumo. Com seu declínio social, o rápido e intenso
refinamento das técnicas de consumo cessa, estas passam ao que se torna então a
esfera privada da vida (em contraste com a ocupacional). Consequentemente, o
ritmo de movimento e mudança nessas esferas, que havia sido relativamente
rápido durante o estágio das cortes absolutas, reduz-se mais uma vez.
Forma da curva:
Não obstante, a forma geral da curva é por toda a parte mais ou menos a mesma:
em primeiro lugar, a fase medieval, com certo clímax no florescimento da
sociedade feudal e cortês, assinalada pelo hábito de comer com as mãos. Em
seguida, uma fase de movimento e mudança relativamente rápidos, abrangendo
aproximadamente os séculos XVI, XVII e XVIII, na qual a compulsão para uma
conduta refinada à mesa pressiona constantemente na mesma direção, na de um
novo padrão de maneiras à mesa.
Daí em diante, observamos uma fase que permanece dentro do padrão já atingido,
embora com um movimento muito lento sempre numa certa direção. O refinamento da
conduta diária nunca perde de todo, nem mesmo neste período, sua importância
como instrumento de diferenciação social. Mas, desde essa fase, não desempenha
o mesmo papel que na fase precedente. Mais do que antes, o dinheiro torna-se a
base das disparidades sociais. E o que as pessoas concretamente realizam e
produzem torna-se mais importante que suas maneiras.
"Delicadeza" e padronização:
É semelhante a curva seguida por outros hábitos e costumes. Inicialmente, a
sopa costuma ser bebida, seja na sopeira comum seja com a concha usada por
várias pessoas. Nos escritos corteses, é prescrito o uso da colher. Ela,
também, será então usada por várias pessoas. Outro passo é mostrado na citação
extraída de Calviac, por volta de 1560. Diz ele que era costume alemão permitir
que cada conviva usasse sua própria colher. O passo seguinte é indicado pelo
texto de Courtin, relativo ao ano de 1672. Nessa ocasião, não se toma mais a
sopa na sopeira comum, mas derrama-se um pouco no próprio prato, usando-se a
própria colher. Mas havia pessoas, somos informados no texto, que eram tão
delicadas que não queriam tomar a sopa de uma sopeira em que outros haviam
mergulhado uma colher já usada. Era, por conseguinte, necessário limpar a
colher com o guardanapo antes de colocá-la na sopeira. E algumas pessoas
queriam ainda mais. Para elas, a pessoa não devia absolutamente pôr novamente
na sopeira uma colher usada. Devia, sim, pedir uma colher limpa para esse fim.
Descrições como essas demonstram não só que todo o ritual de viver juntos
estava em movimento, mas também que as pessoas se conscientizavam dessa
mudança.
Nesse tempo, gradualmente, o costume, ora aceito como natural, de tomar sopa
está sendo estabelecido: todos têm seu próprio prato e colher e a sopa é
servida com um implemento especializado. O ato de comer adquirira um novo
estilo, correspondendo às novas necessidades da vida social.
Coisa alguma nas maneiras à mesa é evidente por si mesma ou produto, por assim
dizer, de um sentimento “natural” de delicadeza. A colher, garfo e guardanapo
não foram inventados como utensílios técnicos com finalidades óbvias e
instruções claras de uso. No decorrer de séculos, na relação social e no
emprego direto, suas funções foram gradualmente sendo definidas, suas formas
investigadas e consolidadas. Todos os costumes no ritual em mutação, por mais
insignificantes, estabeleceram-se com infinita lentidão, até mesmo formas de
comportamento que nos parecem elementares ou simplesmente “razoáveis”, tal como
o costume de ingerir líquidos apenas com a colher. Todos os movimentos da mão —
como, por exemplo, a maneira como se segura e movimenta a faca, colher e garfo
— são padronizados apenas gradualmente, e só vemos o mecanismo de padronização
em sua sequência, se examinamos como um todo a série de imagens. Há um círculo
na corte mais ou menos limitado que inicialmente cria os modelos apenas para
atender às necessidades de sua própria situação social e em conformidade com a
condição psicológica correspondente à mesma. Mas é evidente que a estrutura e o
desenvolvimento da sociedade francesa como um todo fazem com que estratos cada
vez mais amplos se mostrem desejosos, e mesmo sequiosos, de adotar os modelos
desenvolvidos em uma classe mais alta: eles se difundem, também com grande
lentidão, por toda a sociedade, e certamente não sem passarem nesse processo
por algumas modificações.
Transmissão e abrangência da análise:
A transmissão dos modelos de uma unidade social a outra, ora do centro de uma
sociedade para seus postos fronteiriços (como, por exemplo, da corte parisiense
para outras cortes), ora na mesma unidade político-social como, por exemplo, na
França ou Saxônia, de cima para baixo ou de baixo para cima, deve ser
considerada, em todo o processo civilizador, como um dos mais importantes dos
movimentos individuais.
[...]
a observação das maneiras e suas transformações expõe apenas um segmento muito
simples e de fácil acesso do que é um processo de mudança social muito mais
abrangente.
Fala, jargão a partir de um duplo movimento:
Neste particular, também, como aconteceu com as maneiras, ocorre uma espécie de
movimento em duplo sentido: a burguesia é, por assim dizer, “acortesada” e, a
aristocracia, “aburguesada”. Ou, para ser mais preciso, a burguesia é
influenciada pelo comportamento da corte e vice-versa. A influência de baixo
para cima é certamente muito mais fraca no século XVII na França do que no
século XVIII. Mas não está de todo ausente. O castelo de Vaux-le Vicomte, de
propriedade do intendente burguês das finanças, Nicolas Fougeut, é anterior à
régia Versalhes e de muitas maneiras lhe serviu de modelo. Este é um claro
exemplo. A riqueza dos principais estratos burgueses compele os que estão acima
a competir com eles. E a chegada incessante de burgueses aos círculos da corte
gera também um movimento específico na fala: a nova substância humana traz
também consigo uma nova substância linguística, o “jargão” da burguesia, para
os círculos aristocráticos. Elementos seus estão sendo constantemente
assimilados pela linguagem da corte, refinados, polidos, transformados. São, em
uma palavra, “acortejados”, isto é, adaptados ao padrão de sensibilidade dos
círculos de corte. Transformam-se, assim, em meios para distinguir as gens de
la cour da burguesia e depois, talvez muito depois, penetram de novo na
burguesia, assim refinados e modificados, a fim de se tornarem “especificamente
burgueses”.
[...]
Em quase todos esses casos, a forma linguística que aqui aparece como de corte
tornou-se de fato o costume nacional. Mas há também exemplos de formas
linguísticas de corte que são gradualmente abandonadas como “refinadas demais”,
“afetadas demais”.
[...]
10. Se na França as gens de la cour dizem “Esta frase está correta e esta
incorreta”, uma pergunta importante surge que merece pelo menos ser abordada de
passagem: “Por que padrões ela está realmente julgando o que é correto e
incorreto na linguagem? Que critérios usa para selecionar, polir e modificar
expressões?”
Às vezes, essa própria gente reflete sobre o assunto. O que diz sobre ele é, à
primeira vista, surpreendente e, de qualquer modo, sua importância ultrapassa a
esfera da linguagem. Frases, palavras e nuances são corretas porque eles, os
membros da elite social, as usam. E são incorretas porque inferiores sociais as
usam.
[...]
“É bem possível,” responde a senhora, “que haja muitas pessoas bem-educadas que
não conheçam suficientemente bem a delicadeza de nossa língua… uma delicadeza
que é sentida por apenas um pequeno número de pessoas bem-falantes e que as
leva a não dizer que um homem virou defunto a fim de dizer que ele faleceu.”
Um pequeno círculo de pessoas é bem versado nessa delicadeza de linguagem.
Falar como elas é igual a falar corretamente. O que os outros dizem não conta.
Os juízos de valor são apodícticos.
[...]
Palavras antiquadas são impróprias para a fala comum, séria. Palavras muito
novas despertam suspeita de afetação — poderíamos talvez dizer, de esnobismo.
Palavras eruditas que recendem a latim ou grego são suspeitas a todas as gens
du monde. Cercam os que as usam de uma atmosfera de pedantismo, se são
conhecidas outras palavras que dizem a mesma coisa com simplicidade.
Motivos ou razões "higiênicas":
A linguagem é uma das formas assumidas pela vida social ou mental. Grande parte
do que se pode observar na maneira como a linguagem é plasmada torna-se também
evidente em outras formas que a sociedade assume. O modo como pessoas
argumentam que este ou aquele comportamento ou costume à mesa é melhor que
outro, por exemplo, mal se pode distinguir da maneira como alegam que uma
expressão linguística é preferível a outra.
Isto não corresponde à expectativa que talvez tenha um observador do século XX.
Ele, por exemplo, acha, talvez, que a eliminação do hábito de “comer com as
mãos”, a adoção do garfo, as louças e talheres individuais, e todos os demais
rituais de seu próprio padrão podem ser explicados por “razões higiênicas”.
Isto porque é esta a maneira como ele mesmo explica, de modo geral, esses
costumes. Mas o fato é que, em data tão recente como a segunda metade do século
XVIII, praticamente nada desse tipo condicionava o maior controle que as
pessoas impunham a si mesmas. De qualquer modo, as chamadas “explicações
racionais” têm bem pouca importância em comparação com outras.
[...]
Assim como aconteceu com a maneira por que foi moldada a fala, também na
formação de outros aspectos do comportamento em sociedade as motivações sociais
e a adaptação do comportamento aos modelos vigentes em círculos influentes
foram, de longe, os motivos mais importantes. Até mesmo as expressões usadas na
motivação do “bom comportamento” à mesa eram, com frequência, as mesmas usadas
para motivar a “fala correta”.
Tendência ao aumento do embaraço:
Esta délicatesse, esta sensibilidade, e um sentimento altamente desenvolvido de
embaraço, são no início aspectos característicos de pequenos círculos da corte
e, depois, da sociedade da corte como um todo. Isto se aplica à linguagem
exatamente da mesma maneira que aos hábitos à mesa. Não se diz nem se pergunta
em que se baseia essa delicadeza e por que ela exige que se faça isto e não
aquilo. O que se observa é apenas que a “delicadeza” — ou melhor, o patamar do
embaraço — está avançando. Juntamente com uma situação social muito específica,
os sentimentos e emoções começam a ser transformados na classe alta, e a
estrutura da sociedade como um todo permite que as emoções assim modificadas se
difundam lentamente pela sociedade. Nada indica que a condição afetiva, o grau
de sensibilidade, sejam mudados pelo que descrevemos como “evidentemente
racional”, isto é, pela compreensão demonstrável de dadas conexões causais.
Courtin não diz, como se diria mais tarde, que algumas pessoas acham
“anti-higiênico” ou “prejudicial à saúde” tomar sopa na mesma sopeira com
outras pessoas. Não há dúvida de que a delicadeza de sentimentos é aguçada sob
pressão da situação da corte, isto de uma maneira que mais tarde será
parcialmente justificada por estudos científicos, mesmo que grande parte dos
tabus que as pessoas gradualmente se impõem em seus contatos recíprocos, parte
esta muito maior do que em geral se pensa, não tenha a menor ligação com a
“higiene”, sendo motivada — ainda hoje — apenas por uma “delicadeza de
sentimentos”. De qualquer modo, o processo se desenvolve em alguns aspectos de
uma maneira que é o exato oposto do que em geral hoje se supõe. Em primeiro
lugar, ao longo de um período extenso e em conjunto com uma mudança específica
nas relações humanas, isto é, na sociedade, é elevado o patamar de embaraço. A
estrutura das emoções, a sensibilidade, e o comportamento das pessoas mudam, a
despeito de variações, em uma direção bem clara. Então, num dado momento, esta
conduta é reconhecida como “higienicamente correta”, isto é, é justificada por
uma clara percepção de conexões causais, o que lhe dá mais consistência e
eficácia. A expansão do patamar do embaraço talvez se ligue ocasionalmente a
experiências mais ou menos indefinidas e, de início, racionalmente
inexplicáveis, de como certas doenças são transmitidas ou, mais exatamente,
talvez se ligue a medos e preocupações vagos e, por conseguinte, não
esclarecidos, que apontam ambiguamente na direção que mais tarde será
confirmada pela racionalização. A “compreensão racional”, porém, não é o que
condiciona a “civilização” dos hábitos à mesa ou outras formas de
comportamento.
Difusão e cristalização:
Neste contexto, é altamente instrutivo o estreito paralelo entre a
“civilização” dos hábitos à mesa e da fala. Fica claro que a mudança do
comportamento à mesa é parte de uma transformação muito extensa por que passam
sentimentos e atitudes humanas. Também se vê em que grau as forças motivadoras
desse fenômeno se originam na estrutura social, na maneira como as pessoas
estão ligadas entre si. Vemos com mais clareza como círculos relativamente
pequenos iniciam o movimento e como o processo, aos poucos, se transmite a
segmentos maiores. Esta difusão, porém, pressupõe contatos muito específicos e,
por conseguinte, uma estrutura bem-definida da sociedade. Além do mais, ela
certamente não poderia ter ocorrido se não houvessem sido estabelecidas para
classes mais amplas, e não apenas para os círculos que criaram o modelo,
condições de vida — ou, em outras palavras, uma situação social — que tornassem
possível e necessária uma transformação gradual das emoções e do comportamento,
um avanço no patamar do embaraço.
O processo que assim emerge lembra, na sua forma — embora não em substância —,
processos químicos nos quais um líquido, cujo todo é sujeito a condições de
mudança química (como, por exemplo, a cristalização), começa adquirindo forma
cristalina em um pequeno núcleo enquanto o resto só gradualmente se cristaliza
em torno dele. Nada seria mais errôneo do que considerar o núcleo da
cristalização como causa da transformação.
### Família como unidade de consumo
O fato de desaparecer gradualmente, o costume de colocar na mesa grandes
pedaços de animal para serem trinchados liga-se a muitos fatores. Um dos mais
importantes talvez seja a redução gradual do tamanho da unidade familiar,59
como parte do movimento de famílias mais numerosas para famílias menores; em
seguida, ocorre a transferência de atividades de produção e processamento, como
fiação, tecelagem e abate de animais, da casa para especialistas, artesãos,
mercadores e fabricantes, que as desempenham profissionalmente enquanto a
família torna-se basicamente uma unidade de consumo.
### Supressão de traços animais e ocultamento do desagradável
Será mostrado que as pessoas, no curso do processo civilizatório, procuram
suprimir em si mesmas todas as características que julgam “animais”. De igual
maneira, suprimem essas características em seus alimentos.
[...]
A tendência cada vez mais forte de remover o desagradável da vista aplica-se,
com raras exceções, ao trincho do animal inteiro.
O ato de trinchar, conforme demonstram os exemplos, outrora constituiu parte
importante da vida social da classe alta. Depois, o espetáculo passou a ser
julgado crescentemente repugnante. O trincho em si não desaparece, uma vez que
o animal, claro, tem que ser cortado antes de ser comido. O repugnante, porém,
é removido para o fundo da vida social. Especialistas cuidam disso no açougue
ou na cozinha. Repetidamente iremos ver como é característico de todo o
processo que chamamos de civilização esse movimento de segregação, este
ocultamento “para longe da vista” daquilo que se tornou repugnante. A curva que
ocorre do trincho de grande parte do animal ou do animal inteiro, passando pelo
avanço do patamar da repugnância à vista dos animais mortos, para a
transferência do trincho a enclaves especializados por trás das cenas,
constitui uma típica curva civilizadora.
Resta a ser investigado até que ponto processos parecidos são subjacentes a
fenômenos semelhantes em outras sociedades. Na antiga civilização chinesa, mais
que em qualquer outra, o ocultamento do ato de trinchar por trás das cenas foi
efetuado mais cedo e mais radicalmente do que no Ocidente. Na China, o processo
é levado tão longe que se trincha e corta toda carne em um lugar inteiramente
reservado e a faca é inteiramente banida do uso à mesa.
[...]
Fortes movimentos retroativos não são certamente impensáveis. É bem sabido que
as condições de vida na Primeira Guerra Mundial automaticamente provocaram a
suspensão de alguns dos tabus da civilização de tempos de paz. Nas trincheiras,
oficiais e soldados, quando necessário, comiam usando facas e mãos. O patamar
de delicadeza encolheu-se com grande rapidez sob a pressão de uma situação
inescapável.
À parte essas interrupções, sempre possíveis e que podem também levar a novas
configurações de costumes, é bastante clara a linha do desenvolvimento no
emprego da faca.60 A regulação e o controle das emoções intensificam-se. As
instruções e proibições a respeito de um instrumento ameaçador tornam-se cada
vez mais numerosas e diferenciadas. Finalmente, o emprego do símbolo ameaçador
é tão limitado quanto possível.
Não podemos evitar comparar a direção dessa curva de civilização com o costume
há muito praticado na China. Neste país, como se sabe, a faca desapareceu há
muitos séculos como utensílio de mesa. Para muitos chineses, é inteiramente
incivil a maneira como os europeus comem. “Os europeus são bárbaros”, dizem
eles, “eles comem com espadas.” Podemos supor que este costume está ligado ao
fato de que desde há muito tempo a classe alta, que criava os modelos na China,
não foi guerreira, mas uma classe pacífica em altíssimo grau, uma sociedade de
funcionários públicos eruditos.
### Pedagogia da proibição
Algumas formas de comportamento são proibidas não porque sejam anti-higiênicas,
mas por que são feias à vista e geram associações desagradáveis. A vergonha de
dar esse espetáculo, antes ausente, e o medo de provocar tais associações,
difundem-se gradualmente dos círculos que estabelecem o padrão para outros mais
amplos, através de numerosas autoridades e instituições. Não obstante, uma vez
sejam despertados e firmemente estabelecidos na sociedade, esses sentimentos
através de certos rituais, como o que envolve o garfo, são constantemente
reproduzidos enquanto a estrutura das relações humanas não for fundamentalmente
alterada. A geração mais antiga, para quem esse padrão de conduta é aceito como
natural, insiste com as crianças, que não vêm ao mundo já munidas desses
sentimentos e deste padrão, para que se controlem mais ou menos rigorosamente
de acordo com os mesmos e contenham seus impulsos e inclinações. Se tenta tocar
alguma coisa pegajosa, úmida ou gordurosa com os dedos, a criança é
repreendida: “Você não deve fazer isso. Gente fina não faz isso.” E o desagrado
com tal conduta, que é assim despertado pelo adulto, finalmente cresce com o
hábito, sem ser induzido por outra pessoa.
Em grande parte, contudo, a conduta e vida instintiva da criança são postas à
força, mesmo sem palavras, no mesmo molde e na mesma direção pelo fato de que
um dado uso da faca e do garfo, por exemplo, está inteiramente firmado no mundo
adulto — isto é, pelo exemplo do meio. Uma vez que a pressão e coação exercidas
por adultos individuais é aliada da pressão e exemplo de todo o mundo em volta,
a maioria das crianças, quando crescem, esquece ou reprime relativamente cedo o
fato de que seus sentimentos de vergonha e embaraço, de prazer e desagrado, são
moldados e obrigados a se conformar a certo padrão de pressão e compulsão
externas. Tudo isso lhes parece altamente pessoal, algo “interno”, implantado
neles pela natureza. Embora seja ainda bem visível nos escritos de Courtin e La
Salle que os adultos, também, foram inicialmente dissuadidos de comer com os
dedos por consideração para com o próximo, por “polidez”, para poupar a outros
um espetáculo desagradável, e a si mesmos a vergonha de serem vistos com as
mãos sujas, mais tarde isto se torna cada vez mais um automatismo interior, a
marca da sociedade no ser interno, o superego, que proíbe ao indivíduo comer de
qualquer maneira que não com o garfo. O padrão social a que o indivíduo fora
inicialmente obrigado a se conformar por restrição externa é finalmente
reproduzido, mais suavemente ou menos, no seu íntimo através de um autocontrole
que opera mesmo contra seus desejos conscientes.
Desta forma, o processo sócio-histórico de séculos, no curso do qual o padrão
do que é julgado vergonhoso e ofensivo é lentamente elevado, reencena-se em
forma abreviada na vida do ser humano individual. Se quiséssemos expressar
processos repetitivos desse tipo sob a forma de leis, poderíamos falar, como um
paralelo às leis da biogênese, de uma lei fundamental de sociogênese e
psicogênese.
[...]
Mas, ao mesmo tempo, é muito claro que esse tratado tem precisamente a função
de cultivar sentimentos de vergonha. A referência à onipresença de anjos, usada
para justificar o controle de impulsos aos quais a criança está acostumada, é
bem característica. A maneira como a ansiedade é despertada nos jovens, a fim
de forçá-los a reprimir o prazer, de acordo com o padrão de conduta social,
muda com a passagem dos séculos. Aqui a ansiedade despertada em conexão com a
renúncia à satisfação instintiva é explicada a si mesmo e aos demais em termos
de espíritos externos. Algum tempo depois, a restrição autoimposta, juntamente
com o medo, a vergonha e a recusa a cometer qualquer infração, frequentemente
aparece, pelo menos na classe alta, na sociedade aristocrática de corte, como
vergonha e medo a outras pessoas. Em círculos mais amplos, reconhecidamente, a
referência a anjos da guarda é usada durante muito tempo como instrumento para
condicionar crianças. Diminui um pouco quando “razões higiênicas” e de saúde
recebem mais ênfase e se pretende obter um certo grau de controle dos impulsos
e das emoções. Essas razões higiênicas passam, então, a desempenhar um papel
importante nas ideias dos adultos sobre o que é civilizado, em geral sem que se
perceba que relação elas têm com o condicionamento das crianças que está sendo
praticado. Apenas a partir dessa percepção, contudo, é que o que há nelas de
racional pode ser distinguido do que é apenas aparentemente racional, isto é,
fundamentado principalmente na repugnância e nos sentimentos de vergonha dos
adultos.
[...]
Note-se que em seu tratado [de Erasmo] não são frequentes os argumentos de
natureza médica. Quando aparecem, é quase sempre, como no caso acima, para se
opor à exigência de que se restrinjam funções naturais, ao passo que mais
tarde, sobretudo no século XIX, eles servem quase sempre como instrumentos para
compelir ao controle e à renúncia de uma satisfação instintiva. Só no século XX
é que aparece uma ligeira relaxação.
Interessante como Elias mostra que normas presentes numa edição de um manual de
boas maneiras -- como por exemplo de La Salle, vide _Algumas Observações sobre
os Exemplos e sobre Estas Mudanças em Geral,_ foram omitidas ou simplificadas
numa edição posterior, provavelmente por já estarem internalizadas
geracionalmente -- de adultos para crianças -- nos indivíduos e difundidas na
sociedade, tornando até indelicada a mera menção de comportamentos
desagradáveis mencionadas na edição anterior ou mesmo em manuais de outras
épocas, como por exemplo o ato de cagar na rua:
Os exemplos extraídos da obra de La Salle devem ser suficientes para indicar
como estava se desenvolvendo o sentimento de delicadeza. Mais uma vez, é muito
instrutiva a diferença entre as edições de 1729 e 1774. Indubitavelmente, mesmo
a edição anterior já menciona um padrão de delicadeza muito diferente do que é
encontrado no tratado de Erasmo. A exigência de que todas as funções naturais
sejam vedadas à vista de outras pessoas é feita de maneira inequívoca, mesmo
que o modo pelo qual é formulada indique que o comportamento das pessoas —
adultas e crianças — não se conforma ainda à mesma. Embora diga que não é muito
delicado até mesmo falar de tais funções ou das partes do corpo nelas
envolvidas, La Salle, ainda assim as descreve com uma minúcia de detalhes que
nos espanta. Dá às coisas seus verdadeiros nomes, já que não constam da
Civilité, de Courtin, datada de 1672, que se destinava ao uso das classes
altas.
Na segunda edição do livro de La Salle, igualmente, são omitidas todas as
referências detalhadas. Cada vez mais, essas necessidades são “ignoradas”.
Simplesmente lembrá-las torna-se embaraçoso para a pessoa na presença de outras
que não sejam muito íntimas e, em sociedade, tudo o que mesmo remota ao
associativamente as lembre é evitado.
Ao mesmo tempo, os exemplos deixam claro a lentidão com que se desenvolvia o
processo de suprimir essas funções da vida social. Material suficiente66
sobreviveu exatamente porque o silêncio sobre esses assuntos não era observado
antes ou o era menos. O que em geral falta é a ideia de que informação desse
tipo tenha mais do que valor de curiosidade e, por isso mesmo, ela raramente é
sintetizada em uma ideia da linha geral do desenvolvimento. Não obstante, se
adotamos um ponto de vista abrangente, emerge um padrão que é típico do
processo civilizatório. 4. No início, essas funções e sua exposição são
acompanhadas apenas de leves sentimentos de vergonha e repugnância e, por isso
mesmo, sujeitas apenas a modesto isolamento e controle. São aceitas como tão
naturais como pentear os cabelos ou calçar os sapatos. As crianças eram
portanto condicionadas de maneira análoga para uma coisa, ou outra.
[...]
Durante muito tempo, a rua, e quase todos os locais onde a pessoa por acaso se
encontrasse, serviam para a mesma finalidade que o muro do pátio mencionado
acima. Não é nem mesmo raro recorrer à escada, aos cantos da sala, ou aos
beirais das muralhas de um castelo, se a pessoa sente tais necessidades. Os
Exemplos E e F deixam isto claro. Mas mostram também que, dada a
interdependência específica e permanente das muitas pessoas que viviam na
corte, uma pressão era exercida de cima no sentido de um controle mais rigoroso
dos impulsos e, por conseguinte, para maior autodomínio.
O controle mais rigoroso de impulsos e emoções é inicialmente imposto por
elementos de alta categoria social aos seus inferiores ou, no máximo, aos seus
socialmente iguais. Só relativamente mais tarde, quando a classe burguesa,
compreendendo um maior número de pares sociais, torna-se a classe superior,
governante, é que a família vem a ser a única — ou, para ser mais exata, a
principal e dominante — instituição com a função de instilar controle de
impulsos. Só então a dependência social da criança face aos pais torna-se
particularmente importante como alavanca para a regulação e moldagem
socialmente requeridas dos impulsos e das emoções.
### Segunda natureza
No estágio das cortes feudais, e ainda mais nas dos monarcas absolutos, elas
próprias desempenhavam em grande parte essa função para a classe alta. No
estágio posterior, boa parte do que se tornou “segunda natureza” para nós não
havia sido ainda inculcado dessa forma, como um autocontrole automático, um
hábito que, dentro de certos limites, funciona também quando a pessoa está
sozinha. Ao contrário, o controle dos instintos era inicialmente imposto apenas
quando na companhia de outras pessoas, isto é, mais conscientemente por razões
sociais. Tanto o tipo como o grau de controle correspondem à posição social da
pessoa que os impõe, em relação à posição daqueles em cuja companhia está. Isto
muda lentamente, à medida que as pessoas se aproximam mais socialmente e se
torna menos rígido o caráter hierárquico da sociedade. Aumentando a
interdependência com a elevação da divisão do trabalho, todos se tornam cada
vez mais dependentes dos demais, os de alta categoria social dos socialmente
inferiores e mais fracos. Estes últimos tornam-se a tal ponto iguais aos
primeiros que eles, os socialmente superiores, sentem vergonha até mesmo de
seus inferiores. Só nesse momento é que a armadura dos controles é vestida em
um grau aceito como natural nas sociedades democráticas industrializadas.
[...]
Há pessoas diante das quais nos sentimos envergonhados e outras com quem isso
não acontece. O sentimento de vergonha é evidentemente uma função social
modelada segundo a estrutura social.
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