diff --git a/books/filosofia/cristal-fumaca.mdwn b/books/filosofia/cristal-fumaca.mdwn
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--- /dev/null
+++ b/books/filosofia/cristal-fumaca.mdwn
@@ -0,0 +1,487 @@
+[[!meta title="Entre o cristal e a fumaça"]]
+
+## Geral
+
+* Gráfico de Bourgeois, pág. 58.
+* Delírio, aprendizagem, memória e novidade, 124.
+* Metafísica, 146.
+* Limites da teoria de Shannon para explicar a hipercomplexidade: ausência de significado, 171.
+* Cérebro volumoso, juvenilização, aprendizagem, individuação, 172.
+* Erros fecundos, erros fatais em Morin, diversificação, juventude, velhice, 180.
+
+## Natural ou artificial
+
+    Em particular, será um sistema humano - social, por exemplo -
+    natural ou artificial? Pelo fato de ser fabricado por seres humanos, ele
+    parece ser uma organização artificial, como todas as que resultam de
+    planos e programas saídos de cérebros humanos. Nessa medida, a lógica
+    dos sistemas naturais bem poderia afigurar-se inadequada, ou até deslo-
+    cada e perigosa. Entretanto, pelo fato de uma organização social ser
+    também o resultado da composição de efeitos de um grande número de
+    indivíduos, trata-se igualmente, sob certos aspectos, de um sistema auto-
+    organizador natural. Nele, forçosamente, o papel dos planos e programas
+    é relativamente limitado pelo papel das finalidades e desejos dos indiví-
+    duos e dos grupos. Mesmo nas sociedades totalitárias, a questão da origem
+    da autoridade planificadora remete às motivações individuais que fazem
+    com que a aceitemos ou nos adaptemos a ela. Essas motivações, conscien-
+    tes e inconscientes, apesar de humanas, não provêm do cérebro de um
+    engenheiro superdotado. O que equivale a dizer que, numa grande medida,
+    também elas se oferecem a nossa observação sob a forma de sistemas
+    naturais imperfeitamente conhecidos, constituídos por suas interações.
+
+    -- 10
+
+## Finalismo: teleonomia versus teleologia
+
+    Na verdade, quer o admitamos ou não, há um finalismo implícito na
+    maioria dos discursos biológicos. Ofa, essa situação é incômoda, do ponto
+    de vista do método científico, por negar o princípio · de causalidade,
+    segundo o qual as causas de um fenômeno devem ser descobertas antes,
+    e não depois de sua ocorrência. Sendo esse princípio um fundamento do
+    método científico, a impossibilidade de prescindir do finalismo na biolo-
+    gia era uma deficiência dessa ciência que J. Monod analisou brilhante-
+    mente na primeira parte de seu livro.
+
+    [...]
+
+    Resumida em termos muito sucintos, sua tese é a seguinte: um processo
+    teleonômico não funciona em virtude das causas finais, apesar de ter essa
+    aparência e embora pareça orientado para a realização de formas que só se
+    evidenciarão no final do processo.  O que o determina, de fato, não são essas
+    formas como causas finais, e sim a realização' de um programa, como numa
+    máquina programada cujo funcionamento parece orientado para a realização de um
+    estado futuro, quando, na verdade, é cau.s almente determinado pela seqüência
+    de estados pela qual o programa preestabelecido a faz passar. O programa em si,
+    contido no genoma característico da espécie, é o resultado da longa
+
+    -- 18
+
+## Origem da vida
+
+    O problema da origem da vida, hoje em dia, é o do aparecimento do primeiro
+    programa. De fato, a admitirmos a metáfora da programação genética contida nos
+    ADNs - e veremos, mais adiante, que ela não está a salvo de sérias críticas - ,
+    o programa do desenvolvimento de Um indivíduo lhe é fornecido no nascimento,
+    por ocasião da fecundação do óvulo, a partir da replicação dos ADNs de seus
+    pais. Assim, coloca-se a questão da origem do primeiro programa, isto é, do
+    primeiro ADN capaz de se reproduzir e de codificar a síntese das enzimas.
+
+    Ante essa questão, várias linhas de resposta são possíveis. Uma delas extrapola
+    a reprodução laboratorial de condições físico-químicas que, supostamente,
+    teriam sido as da atmosfera primitiva e da •·sopa•• primitiva. Ela se baseia
+    nos resultados de experiências que demonstraram a possibilidade, nessas
+    condições, de sínteses de aminoácidos e de nucleo- tídios, tijolos iniciais
+    indispensáveis à fabricação do já complicadíssimo edifício desse primeiro
+    programa. Evidentemente, devemos sublinhar o caráter hipotético dessas teorias,
+    às quais J. Monod, por sua vez, não pareceu dar muita importância. Para ele, a
+    questão da origem da vida e do primeiro programa era uma questão
+    não-científica, pois concernia à ocor- rência de um evento de baixíssima
+    probabilidade, mas que mesmo assim ocorreu, e de uma vez só. Para ele, já que
+    nada além de encontros moleculares ao acaso poderia explicar a constituição do
+    primeiro organis- mo vivo, e já que esta, em tais circunstâncias, só poderia
+    ser imaginada com uma probabilidade praticamente nula, a questão de sua
+    ocorrência não mais podia ser colocada em termos de probabilidade, a
+    posteriori, agora que sabemos que isso aconteceu. Tratar-se-ia, portanto,
+    tipicamente de um evçnto único, não-reprodutível, e que escaparia por definição
+    ao campo de aplicação da pesquisa científica.
+
+    Outros, ao contrário, como A. Katzir-Katchalsky, 10 M. Eigen 11 e 1.
+    Prigogine, 12 não desistiram e partiram em busca de leis de organização -
+    físico-químicas, é claro - que permitissem compreender, desta vez, não apenas
+    que o primeiro programa não tivera uma probabilidade quase nula, mas que, ao
+    contrário, sua ocorrência fora obrigatória e inelutável. Dentro dessa
+    perspectiva, a origem da vida não teria sido um evento único de baixíssima
+    probabilidade, mas um evento que se reproduziria todas as ve- zes que as
+    condições físico-químicas da terra primitiva se materializassem.  A eventual
+    descoberta de formas de vida em outros planetas seria, eviden- temente, um
+    argumento a favor dessa segunda linha de pensamento.
+
+    -- 21
+
+## Ordem dos documentos
+
+    É conhecida a história da escrivaninha e das prateleiras entulhadas de
+    livros e documentos.• Estes, aparentemente, acham-se empilhados de qualquer
+    maneira. No. entanto, seu dono sabe perfeitamente encontrar, se for preciso, o
+    documento que procura. Ao contrário, quando, por infelid- dade, alguém ousa pôr
+    ordem neles .. , é possível que o dono se tome incapaz de encontrar o que quer
+    que seja. É evidente, neste caso, que a aparente desordem era uma ordem, e
+    vice-versa. Aqui, trata-se de docu- mentos em sua relação com seu usuário. A
+    desordem aparente oculta uma ordem determinada pelo conhecimento individual de
+    cada um dos docu- mentos e de sua possível significação utilitária. Mas, em que
+    aspecto essa ordem tem a aparência de desordem? É que, para o segundo
+    observador, aquele que quer ºpôr em ordem .. , os documentos já não têm,
+    individual- mente, a mesma significação. Em casos extremos, não têm
+    significação alguma, a não ser a que se liga a sua forma geométrica e ao lugar
+    que eles podem ocupar na escrivaninha e nas prateleiras, de maneira a que
+    coinci- dam, em seu conjunto, com uma certa idéia a priori, com um padrão
+    consiederado globalmente ordenado. Vemos, portanto, que a oposição entre ordem
+    e aparência de ordem provém de os doc-umentos serem considerados, quer
+    individualmente, com . sua significação, quer global- mente~ com uma
+    significação individual diferente (determinada, por exemplo, por seu tamanho ou
+    sua cor, ou por qualquer outro princípio de alinhamento importado de fora e sem
+    a opinião de seu usuário), quer ainda sem significação alguma.
+
+    -- 27
+
+## Confiabilidade dos organismos
+
+    Daí todo um campo de pesquisas, inaugurado por von Neumann [4] e seguido por
+    muitos outros, especialmente Winograd e Cowan [3, 6], com a finalidade de
+    descobrir princípios de construção de autômatos cuja confiabilidade fosse maior
+    que a de seus componentes!  Essas pesquisas resultaram na definição de
+    condições necessárias (e suficientes) para a realização desses autômatos. A
+    maioria dessas condi- ções (redundância dos componentes, redundância das
+    funções, complexi- dade dos componentes, deslocalização das funções) [6, 7]
+    resultou numa espécie de compromisso entre determinismo e indeterminismo na
+    cons- trução dos autômatos, como se uma certa quantidade de indeterminação
+    fosse necessária, a partir de certo grau de complexidade, para pennitir ao
+    sistema adaptar-se a um certo nível de ruído. Isso, evidentemente, não tleixa
+    de lembrar um resultado análogo obtido na teoria dos jogos pelo mesmo Neumann [8].
+
+    [...]
+
+    Quando um sistema se fixa num estado particular, ele fica inadaptável, e esse
+    estado final pode ser igualmente ruim. Ele será incapaz de se ajustar a alguma
+    coisa que constitua uma situação inadequada" [9].
+
+    -- 38
+
+## Ordem pelo ruído
+
+    Isso é apenas uma conseqüência de que, na ausência de erros de replicação,
+    nenhuma novidade pode aparecer.
+
+    -- 49
+
+    Assim, ao menos em princípio, vemos como uma produção de informação
+    sob o efeito de fatores aleatórios nada tem de misterioso: ela não passa da
+    co.nseqüência de produções de erros num sistema repetitivo, constituído
+    de maneira a não se: destruído quase que de imediato por um número
+    relativamente pequeno de erros.
+
+    Na verdade, no que concerne à evolução das espécies, nenhum
+    mecanismo é concebível, à parte os que foram sugeridos por determinadas
+    teorias, nas quais eventos aleatórios (mutações ao acaso) são responsáveis
+    por uma evolução orientada para uma complexidade e uma riqueza ma-io-
+    res da organização. No que concerne ao desenvolvimento e à maturação
+    dos indivíduos, é muito possível que esses mecanismos também desem-
+    penhem um papel nada desprezível, especialmente se incluirmos aí os
+    fenômenos de aprendizagem adaptativa não dirigida, na qual o indivíduo
+    se adapta a uma situação radicalmente nova, em que é difícil recorrer a
+    um programa preestabelecido. De qualquer modo, essa noção de programa
+    preestabelecido, aplicada aos organismos, é muito discutível, na medida
+    em que se trata de programas de ••origem interna .. , fabricados pelos
+    próprios organismos e modificados no curso de seu desenvolvimento. Na
+    medida em que o genoma é fornecido de fora (pelos pais), é freqüente ele
+    ser assemelhado a um programa de computador, mas essa semelhança nos
+    parece inteiramente abusiva. Se há uma metáfora cibernética apta a ser
+    utilizada para descrever o papel do genoma, a da memória nos parece
+    muito mais adequada que a do programa, pois esta última implica todos
+    os mecanismos de regulação que não se acham presentes no próprio
+    genoma. Sem isso, não evitamos o paradoxo do programa que precisa dos
+    produtos de sua execução para ser lido e executado. Ao contrário, as
+    teorias da auto-organização permitem compreender a natureza lógica de
+    sistemas onde o que desempenha a função do programa se modifica sem
+    parar, de maneira não preestabelecida, sob o efeito de fatores .. aleató-
+    rios" do ambiente, produtores de .. erros" no sistema.
+    
+    Mas, que são esses erros? Segundo o que acabamos de ver, até por
+    causa de seus efeitos positivos, eles já não parecem ser erros em absoluto.
+    O ruído provocado no sistema pelos fatores aleatórios do ambiente já não
+    seria um verdadeiro ruído, a partir do momento em que fosse utilizado
+    pelo sistema como fator de organização. Isso significaria que os fatores
+    do ambiente não são aleatórios. Mas eles são. Ou, mais exatamente,
+    depende da reação posterior do sistema em relação a eles o fato de, a
+    posteriori, esses · fatores serem reconhecidos como aleatórios ou como
+    parte de uma organização. A priori, eles são efetivamente aleatórios, se
+    definirmos o acaso como a intersecção de duas cadeias de causalidade
+    independentes: as causas de sua ocorrência nada têm a ver com o enca-
+    deamento dos fenômenos que constituiu a história anterior do sistema até
+    então. É nesse sentido que sua ocorrência e seu encontro com essa história
+    constituem ruído, do ponto de vista das trocas de informação no sistema,
+    e só são passíveis de produzir erros nele. Mas, a partir do momento em
+    que o sistema é capaz de reagir a esses erros, de modo não apenas a não
+    desaparecer, mas também a modificar a si mesmo num sentido que lhe
+    seja benéfico, ou que, no mínimo, preserve sua sobrevivência posterior;
+    em outras palavras, a partir do momento em que o sistema é capaz de
+    integrar esses erros em sua própria organização, .eles então perdem um
+    pouco, a posteriori, seu caráter de erros. Preservam-no apenas de um
+    ponto de vista externo ao sistema; no sentido de que., como efeitos do
+    ambiente sobre este, eles mesmos não correspondem a nenhum programa
+    preestabelecido, contido no ambiente e destinado a organizar ou desorga-
+    nizar o sistema. 11 Ao contrário, de um ponto de vista interno, na medida
+    em que a organização consiste precisamente numa seqüência de desorga-
+    nizações resgatadas, eles só aparecem como erros no instante exato de sua
+    ocorrência e em relação a uma manutenção, que seria tão nefasta quanto
+    imaginária, de um statu quo do sistema organizado, que imaginamos tão
+    logo uma descrição estática dele nos possa ser dada. Caso contrário, e
+    depois desse instante, eles são integrados e recuperados como fatores de
+    organização. Os efeitos do ruído tomam-se, então, eventos da história do
+    sistema e de seu processo de organização. Contudo, permanecem como
+    efeitos de um ruído, visto que sua ocorrência era imprevisível.
+
+    -- 50-51
+
+## Ruído organizacional
+
+    Uma das questões mais difíceis a propósito desse problema capital
+    das organizações hierárquicas, que encontramos por toda parte na ·biolo-
+    gia, é a seguinte: como passamos de um nível para outro, ou, mais
+    precisamente, quais são as determinações causais que dirigem a passagem
+    de um nível de integração para outro?
+
+    Num sistema dinâmico, descrito por um sistema de equações dife-
+    renciais, às funções (soluções do sistema) caracterizam o nível em que
+    estamos interessados; as condições limites caracterizam o nível superior.
+    Compreendemos perfeitamente como as condições limites, que impõem
+    as constantes de integração, determinam as funções de soluções do siste-
+    ma. Mas, inversamente, como podem as funções influenciar as condições
+    limites? Em outras palavras, como pode um nível inferior - menos
+    integrado - , na matemática, influenciar o nível superior? Como repre-
+    sentar o efeito do nível molecular sobre as células, o das células nos órgãos
+    e o dos órgãos no organismo, embora esse seja o pão de cada dia da
+    observação biológica?
+
+    -- 60
+
+    Isso significa que a introdução da posição do observador não cons-
+    titui apenas uma etapa lógica do raciocínio: esse observador, externo ao
+    sistema, é, de fato, num sistema hierarquizado, o nível de organização
+    superior (englobante), comparado aos sistemas-elementos que o consti-_
+    tuem; é o órgão em relação à célula, o organismo em relação ao órgão etc.
+    É em relação a ele que os efeitos do ruído sobre uma via no interior do
+    sistema, em certas condições, podem ser positivos.
+
+    -- 61
+
+## Auto-organização e individuação
+
+    A teoria da auto-organização fornece um princípio geral de diferenciação pela
+    destruição, eventualmen- te aleatória, de uma redundância que caracteriza o
+    estado inicial de indiferenciação. Assim, a quantidade de informação contida
+    num eventual programa genético pode ser consideravelmente reduzida em
+    comparação com a que seria necessária no caso de uma determinação rigorosa dos
+    detalhes da diferenciação. Isso parece particularmente pertinente no que
+    concerne ao desenvolvimento do sistema nervoso, onde uma parcela de
+    aleatoriedade permite uma considerável economia de informação genéti- ca I 5
+    que, de outra maneira, seria insuficiente, caso tivesse que especificar em
+    todos os seus detalhes um sistema constituído de mais de dez bilhões de
+    neurônios interligados. Também aí podemos observar, pelo menos em alguns casos,
+    conexões inicialmente redundantes, que se especificam no curso do
+    desenvolvimento, perdendo essa redundância. 16
+
+    [...]
+
+    Esses processos são empregados não apenas nos "reconhecimentos
+    de formas" que caracterizam nosso sistema cognitivo, mas também na
+    constituição e no funcionamento do sistema imunológico, verdadeira
+    máquina de aprendizagem e de integração do novo, desta vez no nível de
+    formas celulares e moleculares. De fato, o sistema imunológico realiza
+    uma rede celular em que as células - os linfócitos - são ligadas, entre
+    si e com os antígenos que constituem seus estímulos externos, por meca-
+    nismos de reconhecimento molecular ao nível de suas membranas. Tam-
+    bém aí estamos diante de um sistema de aprendizagem não-dirigida cujo
+    desenvolvimento é condicionado pela história dos contatos com diferen-
+    tes andgenos, uma história, evidentemente, pelo menos em parte, não-pro-
+    gramada e aleatória. Ora, o reconhecimento dos antígenos pelos linfócitos
+    é o resultado, no nível molecular e celular, de uma seleção de linfócitos
+    preexistentes, com suas estruturas membranosas adequadas, cuja multi-
+    plicação é desencadeada pelo contato com determinado antígeno (seleção
+    clonai). Por isso, a possibilidade de uma variedade praticamente infinita
+    e imprevisível de reações imunológicas, a partir de um número finito de
+    linfócitos determinados, implica a cooperação de diversos níveis diferen-
+    tes de reconhecimento. Uma combinação de células diferentes, pertencen-
+    tes a níveis diferentes, multiplica consideravelmente a variedade das
+    respostas possíveis (Jerne 18) . Por fim, também nesse caso, uma redundân-
+    cia inicial nessa cooperação - transmissão de informações entre diferen-
+    tes níveis da rede celular que constitui o sistema imunológico - talvez
+    permita explicar o desenvolvimento com aumento da diversidade e da
+    especificidade. 19 Este, no final das contas, leva à constituição da indivi-
+    dualidade molecular de cada organismo, que, no homem, sabemos ser
+    praticamente absoluta. Na verdade, ela é condicionada pelos encontros
+    parcialmente aleatórios com estruturas moleculares e celulares trazidas
+    por um ambiente sempre renovado, pelo menos em parte.
+
+    -- 62-63
+
+### Ruído e significação
+
+    Como vimos anteriormente a propósito da história da escrivaninha desar-
+    rumada, a idéia do sentido e da significação está sempre presente na noção
+    de ordem, bem como na de informação. Contudo, vimos também que a
+    teoria de Shannon só permitiu quantificar a informação ao preço da
+    colocação de sua significação entre parênteses. O princípio da ordem a
+    partir do ruído, em suas sucessivas formulações quantitativas (H. von
+    Foerster, 1960; H. Atlan, 1968, 1972, 1975 2 º), utilizou igualmente a teoria
+    de Shannon, da qual estão ausentes as preocupações com a significação.
+    Na verdade, o problema do sentido e da significação. continua presente,
+    muito embora o suponhamos eliminado. Está presente, é claro, nas noções
+    de codificação e decodificação. Mas também está presente, de maneira
+    implícita-negativa e como uma espécie de sombra, em todas as utilizações
+    das noções de quantidade de informação ou de entropia para avaliar o
+    estado de complexidade, de ordem ou desordem de um sistema. Finalmen-
+    te, veremos que o princípio de ordem a partir do ruído, apesar de expresso
+    num formalismo puramente probabilístico do qual o sentido se acha
+    ausente, repousa implicitamente na existência da significação, e até de
+    diversas significações da informação. Em outras palavras, trata-se de uma
+    possível via .de abordagem para a solução do último dos problemas que a
+    teoria de Shannon negligenciou: o da significação da informação. 2 1
+
+    Para isso, é conveniente apreendermos, logo de saída, a inversão
+    que efetuamos em relação à formulação inicial de von Foetster, quando
+    exprimimos o princípio da ordem através do ruído como um aumento da
+    variedade, da informação de Shannon e da complexidade, ligado a uma
+    diminuição da redundância.
+
+    -- 63-64
+
+### Complexidade
+
+    Em outras palavras, complexidade é uma desordem aparente onde temos razões para
+    presumir uma ordem oculta; ou ainda, a complexidade é uma ordem cujo código
+    não conhecemos.
+
+    -- 67
+
+    É pelo fato de a informação ser medida (por nós) por uma fórmula
+    da qual o sentido está ausente, que seu oposto, o ruído, pode ser gerador
+    de informação. Isso nos permite continuar a exprimi-lo pela mesma
+    função H, embora sua significação seja diferente, por ser recebida em dois
+    ·níveis diferentes de organização. A informação, num nível elementar, tem
+    um sentido que desprezamos quando a medimos pelas fórmulas de Shan-
+    non, mas que se traduz por seus efeitos em seu destinatário, a saber a
+    estrutura e as funções desse nível, tal como as percebemos.
+
+    -- 74-75
+
+### Delírio
+
+    Qualquer hipótese científica realmente nova é, de fato, da ordem do
+    delírio, do ponto de vista de seu conteúdo, por se tratar de uma projéção
+    do imaginário no real. É tão-somente por aceitar, a priori, a possibilidade
+    de ser transformada ou mesmo abandonada, sob o efeito de confrontações
+    com novas observações e experiências, qu~ ela fmalmente se separa disso.
+    Em particular, poqemos compreender como a própria interpretação psica-
+    nalítica pode desempenhar o papel de um delírio organizado, ou, ao
+    contrário, o de uma criação libertária, conforme seja vivida de maneira
+    fechada, como o modelo central - o padrão imutável-, o pólo organi-
+    zador, ou de maneira aberta, como uma etapa fugaz no processo auto-or-
+    ganizador. Entretanto, seja qual for o caso, o conteúdo da interpretação
+    consiste sempre no que costumamos chamar "uma projeção do imaginá-
+    rio no real".
+
+    [...]
+
+    Dentro dessa pers- pectiva, podemos compreender que esse desvelamento do
+    delírio no Homo sapiens, latente, por ser inconsciente em seus predecessores,
+    tenha sido concomitante a'o desenvolvimento da linguagem simbólica, na medi- da
+    em que este implicou e permitiu, justamente, um considerável aumento das
+    capacidades de memória, em comparação com as que lhe eram preexistentes.
+
+    -- 124-125
+
+### Humanismo
+
+    Num artigo publicado há alguns anos, A. David constatou que cada
+    um dos progressos da cibernética fazia o homem desaparecer um pouco
+    mais [6]. Mas um último sobressalto de humanismo o fez localizar em nós
+    o derradeiro recôndito de onde seria impossível desalojar o homem: seria
+    o desejo (nosso programa, em outras palavras?). Mediante isso, ele nos
+    sugeriu uma descrição futurista de homens telegrafados no espaço sob a
+    forma de "programas puros ... Mas, que acontece com isso quando se
+    constata que, nos sistemas cibernéticos auto-organizadores dotados da
+    complexidade dos organismos vivos, o programa não pode ser localizado,
+    porque se reconstitui sem parar? Pois bem, isso significa que o homem é
+    finalmente desalojado até mesmo daí, e que para nós é melhor que seja
+    assim, porque, dessa maneira, a unidade e a autonomia de nossa pessoa,
+    na medida em que se produzirem, não mais poderão ser telegrafadas no
+    espaço, separadas do resto, que a superfície que limita um volume e define
+    sua unidade não pode ser separada desse volume. Alguns programas de
+    organizações talvez possam ser telegrafados: os sistemas assim realizados
+    talvez possam assemelhar-se a nós e dialogar conosco. Não há nada de
+    inquietante nisso, 9 muito pelo contrário, porque eles não serão nós; como
+    tampouco o são as máquinas, inclusive as mais poderosas, que nos
+    prolongam.
+
+    [6. A. David, "Nouvelles définitions de l'humanisme", in Wiener e Schadc,
+    (orgs.), Progress in Biocybernetics, Nova York, Elsevier Publications Co.,
+    1966.]
+
+    -- 122
+
+### Tempo e irreversibilidade
+
+    Mas existe um outro tipo de situação, muito diferente, que aparece
+    ao observarmos fenômenos naturais - não artificialmente criados por
+    outro seres humanos -, e quando estes nos parecem orientados de tal
+    maneira que as coisas acontecem como se fossem determinadas por um
+    projeto, ou seja, também por uma vontade, um desejo ou uma intenção.
+    Naturalmente, esse tipo de situação é encontrado, em especial, quando
+    observamos os sistemas biológicos em todos os seus níveis de organiza-
+    ção, exceto, talvez, ;io nível molecular. Isso explica que a biologia tenha
+    freqüentemente dado margem a toda sorte de especulações místicas ou
+    religiosas, e nem sempre no melhor sentido: se observamos fenômenos
+    em que as coisas se produzem de maneira aparentemente finalista, como
+    se resultassem de uma vontade (mesmo que não haja ninguém para nos
+    dar informações sobre essa vontade), torna-se tentador, é claro, assimilar
+    a existência dessa suposta vontade à vontade de Deus ou do Criador. O
+    que vimos até o momento nos mostra em que sentido essa hipótese não é
+    necessária, pois começamos a compreender como a matéria pode ser um
+    locus de fenômenos de àuto-organização: em razão de diversos tipos de
+    interações entre a ordem e o acaso, amostras de matéria podem evoluir de
+    tal maneira que, aos olhos do observador externo, parecem determinadas
+    por seu futuro, embora, na verdade, isso não aconteça.
+
+    A verdade é que, nessas situações - e embora não sejamos obriga-
+    dos a presumir a existência de uma vontade consciente -, estamos
+    lidando com uma inversão local do tempo, na medida em que se produz
+    uma diminuição local da entropia. Essa inversão não resulta, é claro, de
+    uma vontade humana que dite sua orientação, e as vontades humanas são
+    as únicas que conhecemos, porque a vontade de Deus é apenas uma
+    abstração da vontade humana.
+
+    -- 143
+
+    A biologia físico-química nos indica - sem por isso nos dar
+    nenhuma receita, é claro - como tudo isso é teoricamente possível, pek·
+    menos em princípio, e como funciona nos sistemas biológicos em desen -
+    volvimento. Exatamente, embora de maneira abstrata, isso pode se resu-
+    mir assim: a habitual direção irreversível do tempo se inverte nos proces-
+    sos em que a entropia de um sistema aberto decresce e em que a
+    informação e a organização são criadas através da utilização de interações
+    aleatórias do sistema com seu ambiente. Isso é apenas uma conseqüência
+    direta do fato de que o habitual caráter irreversível do tempo, na física, é
+    - determinado pela lei do aumento da entropia. De fato, daí decorre que,
+    quando se pode produzir uma diminuição da entropia em algum lugar, é
+    como se a direção do tempo, localmente, fosse invertida nesse ponto; o
+    que equivale a dizer que a passagem do tempo, de destrutiva, toma-se
+    criadora.
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+### Novas ciência e epistemologia
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+    Assim, a ciência do homem, visando a uma ciência do político, desembocaria
+    inevitavelmente numa ciência do homem conhecedor e sábio, e portanto, numa
+    ciência sobre a ciência, numa nova epistemologia, e portanto, num novo
+    paradigma, numa nova prática científica. A reforma da ciência aqui conclamada
+    implica uma superação da atitude operacional que se impôs e continua a se impor
+    cada vez mais na prática científica: o objetivo da ciência já não é compreender
+    - pois, afinal, que é compreender, se só nos colocamos problemas que podemos
+      resolver e eliminamos todas as questões consideradas "não-científicas"? - , e
+    sim resolver problemas de laboratório graças aos quais se molda um novo
+    universo técnico e lógico, que tendemos a considerar -- em virtude de sua
+    eficácia operacional - coincidente com a realidade física inteira. O fato de
+    isso não acontecer, de esse universo ser cada vez mais artificial - para ser
+    repetitivo e reproduzível, para que a antiga ciência possa aplicar-se a ele
+    eficazmente-, constitui, evidentemente, a razão do abismo que reconhecemos,
+    sempre com um certo espanto ingênuo, entre as ciências laboratoriais e a
+    ciência do real vivido . Há nisso uma maquinação da epistemologia ocidental,
+    que H. Marcuse, ao que saibamos, foi o primeiro a denunciar. Julgou-se que,
+    para escapar aos engodos da metafísica, a ciência deveria ser apenas
+    operacional, e eis que nos encerramos no universo alienante e unidimensional do
+    operacional sem negatividade, onde o estrangeiro e o estranho são simplesmente
+    rechaçados, afastados, quando não podem ser recuperados.
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