diff --git a/books/philosophy/cidade-perversa.md b/books/philosophy/cidade-perversa.md
index c04e21ff032ea0340d01bfc18b55a974f2055bf0..b9c389fcb1845c4446e575d64b9c82ee3e1a6b23 100644
--- a/books/philosophy/cidade-perversa.md
+++ b/books/philosophy/cidade-perversa.md
@@ -1,19 +1,169 @@
 [[!meta title="A Cidade Perversa"]]
+[[!meta date="2018-10-07 12:00:00-0300"]]
+[[!toc startlevel=2 levels=4]]
 
 ## Sobre
 
-* Título: [A Cidade Perversa](https://outrapolitica.wordpress.com/2010/05/27/a-cidade-perversa-liberalismo-e-pornografia/).
+* Título: [A Cidade Perversa - Liberalismo e Pornografia](https://outrapolitica.wordpress.com/2010/05/27/a-cidade-perversa-liberalismo-e-pornografia/).
 * Autor: [Dany-Robert Dufour](https://fr.wikipedia.org/wiki/Dany-Robert_Dufour).
 
 ## Impressões
 
 * Uau! Como ressoa com as leituras de Elias, Marcuse e Hans Sachs.
-* Marquês de Sade versus Sady Baby?
+* Marquês de Sade versus [Sady Baby](https://pt.wikipedia.org/wiki/Sady_Baby)?
+
+## Resumo
+
+O livro articula a mudança do pensamento ocidental, a partir de Pascal, do
+paradigma agostiniano da Cidade Deus -- que seria caracterizada pelo amor a
+Deus e ao próximo junto com o máximo desprezo de si (paradigma ultra-altruísta)
+-- para a Cidade Perversa -- de característica oposta: egoísmo absoluto e
+desprezo ao outro -- cuja melhor exemplificação até hoje seria dada pela obra
+de Sade.
+
+A noção então de que o capitalismo seria dada apenas pela orientação
+egóico-puritana cujo expoente clássico é Adam Smith -- e de onde a harmonia da
+Cidade dos Homens seria uma característica emergente, a "Mão Invisível" --
+precisa ser modificada para incluir também o traço perverso. Daí que o
+capitalismo contemporâneo seria associado a um comportamento simultaneamente
+puritano e perverso.
+
+Uma Cidade dos Homens operando como Cidade de Deus, a moral de cada cidadão
+seria guiada pelo princípio do máximo altruísmo: cuidar de tudo e todos, se
+preocupar com tudo e todos ao ponto de jamais cuidar de si. Num sistema
+hipotético deste tipo, haveria uma tendência ao surgimento de uma harmonia
+entre as pessoas pois umas cuidariam das outras onde o valor social seria dado
+por uma espécie de "endividamento perpétuo", [conforme demonstrei para uma
+sociedade hipotética caracterizada pela ajuda múltipla](/economics/valor-social/).
+
+O capitalismo traria uma gradual, porém acelerada, mudança onde o egoísmo se torna
+aceitável até a inversão da lógica da Cidade de Deus. Surge então a Cidade Perversa,
+onde os cidadão seriam então estimulados a adotar a postura egoísta: se não adotarem,
+acabam como presas fáceis de quem o adota. Surge então o valor anti-social e
+a desajuda múltipla, ao contrário da harmonia prevista por Smith. Pascal é o
+grande exemplo tanto por sua vida oscilando entre o extremo puritanismo e
+arroubos de vida mundana, como especialmente pelas suas iniciativas empresariais.
+Pascal seria o símbolo do início da permissão do ego para a satisfação das paixões
+em vida:
+
+    47
+
+    No fragmento 458 dos Pensamentos, Pascal enumera três concupiscências (“três
+    rios de fogo que abrasam a terra”), resultando da chegada do amor de si ao
+    primeiro plano, em detrimento do amor de Deus: a paixão de ver e saber, a
+    paixão dos sentidos e da carne e a paixão de dominar (libido sciendi, libido
+    sentiendi, libido dominandi).
+
+As implicações dessa mudança de valor é mascarada por um puritanismo hipócrita até
+serem levadas às últimas consequências pela obra de Sade.
+
+A relação maquínica de produção e consumo em escala industrial, articulando Marx
+e Sade (vide seleção de trechos) é crucial.
 
 ## Análise
 
+### Estudo de caso: Eleições Brasil Hostil 2018
+
+Tive um sonho muito doido, talvez um dia depois de ter terminado o livro e já ter engrenado
+na leitura da [Psicologia de Massas do Fascismo](/books/psychology/mass-psychology-of-fascism)
+do Reich.
+
+Nele, ocorre um debate político em que havia três candidatos no segundo turno
+(uma tríade!), Haddad, Bolsonaro e uma terceira pessoa. Na pergunta sobre
+ética, havia apenas duas possibilidades na mesa, a de Haddad e a do terceiro/a
+candidato, já que Bolsonaro se apresentava sem sistema ético definido; Haddad
+se apresentava como seguindo a ética de Morin, mas que se parecia com uma
+versão cristã/satânica, perverso/puritana e formulada nos finais do período
+medieval, mas ainda não renascentista.
+
+Há um momento em que Bolsonaro é instado a assumir uma posição.  Ele, num
+estado hesitante, talvez meio confuso, afirma que não sabe explicar o porquê,
+como chegou à conclusão, mas julgava que sua ética era na linha moriniana...
+fico estupefato, neste momento consto como expectador, a platéia aplaude porque
+isso significa a virada para Haddad e a definição das eleições; o perverso fica
+confuso; eu fico confuso - "peraí, a ética moriniana não tem nada disso"; vou
+consultar uma "bula", onde está o resumo da ética, leio, é uma rabulagem na
+linha do amor Dei (amor a Deus, ao próximo) / amor sui (amor próprio).
+
+Seria o pai castrador capitulando? Ou o sádico "mítico" (e muitos o chamam
+de mito) entendeu que Haddad pode representar um tipo de sadismo mais sutil
+e talvez assim mais perverso por ser um neoliberal disfarçado de "trabalhista"
+/ "social democrata"?
+
+Não exatamente. Talvez Bolsonaro capitulava para Haddad acreditando que este
+seria ainda mais perverso, por estar disfarçado de social-democrata disfarçado
+de trabalhista mas por ser um neoliberal. Capitulava, como um sádico passando
+a se sujeitar.
+
+Será que isso não revelaria um pouco do balanço de economia psíquica
+inconsciente rolando por aí?  Talvez haja uma grande parcela do eleitorado que
+prefira a perversidade declarada, na qual é permitido que o indivíduo puritano
+também pratique a perversão, ao invés de um perverso enrustido que não permita
+a perversão generalizada, mas só a dele?
+
+É o que a minha psicanálise de linha bacaniana (de Baco!) mostra da psicologia
+de massas orientada ao fascismo.
+
+A massa quer botar pra foder e descontar a raiva nos setores identitários pela
+promessa não cumprida do antigo Pai Barbudo de que haveria consumo
+indefinido... as pessoas foram incitadas a consumir, ainda são, mas não
+conseguem mais tanto por motivos materiais quanto psíquicos. O Brasil atingiu
+um certo limite do gozo possível nesta época.
+
+Isso está de acordo com [esta análise econômica](https://www.brasil247.com/pt/247/mundo/371189/Pepe-Escobar-o-futuro-da-humanidade-está-sendo-jogado-no-Brasil.htm):
+
+     O jornalista Pepe Escobar expõe sua análise quinzenal à TV 247, com
+     perplexidade, dizendo que não previa uma ameaça fascista no Brasil,
+     alertando que a vitória do candidato Jair Bolsonaro (PSL) pode jogar o
+     Brasil num limbo econômico de subserviência aos EUA, afastando mercados
+     estratégicos como o europeu e o asiático; "O futuro da humanidade está
+     sendo jogado no Brasil", alerta o jornalista; assista a íntegra da
+     análise do jornalista
+
+     [...]
+
+     Pepe considera que o grande capital prefere Haddad a Bolsonaro, porém,
+     o candidato do PT teria que assinar a cartilha neoliberal. "O capital
+     internacional vai cobrar seu preço altíssimo", avalia.
+
+Aí recebo este voto de bom voto, esta bomba semiológica:
+
+[[!img voto-prisao.jpg link="no"]]
+
+Tou falando?! Pura coprofagia sado-masoquista no dia de eleger o próximo Marquês de Sade!
+
+Agora, umas palavrinhas sobre sujeição:
+
+    Urna eletrônica
+
+Que equipamento curioso neste contexto, hein?
+
+    Urna
+    Deposite seu voto na urna
+    BURP! PUM!
+
+Por que não "saco preto"?
+
+    Deposite seu canditado no saco preto
+    Embrulhe o peixe no jornal e entregue aos correligionários
+
+Botar o voto na urna como um ritual de morte do indivíduo, de sujeição, e a
+urna é o caixão da sua própria autonomia, e talvez até da consciência.
+
+Escolha o futuro próximo: governo demento-fascista-ultraliberal ou neoliberal
+disfarçado de social-democrata disfarçado de trabalhista em risco de virar
+golpe militar.
+
+Das opções dadas, o antifascismo fala mais alto do que NONONON pra sair do
+dilema da urna.
+
+As eleições são importantes, mas não definem totalmente o cenário futuro. A
+batalha decisiva ocorre nos corações e mentes...
+
 ### O loop estranho da subjetivação
 
+Ok, chega de eleições e voltemos aos cadáveres mais frios do sadismo literário.
+
 O livro segue a linha da lógica cartesiana para chegar à linha dos loops estranhos, passando,
 usando, criticando e ultrapassando Lacan. Daí uma linha evolutiva do cartesianismo, para o lacanismo
 e em seguida para o hofstadterismo!
@@ -247,6 +397,12 @@ produção e o consumo capitalistas.
 
 Resumiria o livro com o trocadilho: "Sade, Smith e Lacan: um laço realmente estranho, mas não eterno".
 
+E poderíamos pensar em outros tipos de diagramas e máquinas possíveis para a constituição
+da relação sujeito/objeto/outro, com Sujeito-Deus, Sujeito-Leviatã, e até de Sujeito como composto 
+por redes de `eu <-> tu`, incluindo também outros seres. Teríamos assim a possibilidade de
+inúmeras montagens e configurações de redes relacionais, hierárquicas, anárquicas, poliárquicas...
+uma modelagem desse tipo poderia ajudar na análise de dinâmicas sociais.
+
 ### O dilema do prisioneiro
 
 Aqui novamente esbarramos com um limite: altruísmo está situado no lugar da dívida com
@@ -530,3 +686,189 @@ Compilação parcial da seleção de trechos feita do livro todo... a ser comple
     Adam Smith, se espalhava pelo mundo. A esse inferno das bibliotecas, exposto
     apenas à crítica devoradora dos ratos e camundongos, é que Sade foi recolhido e
     escondido por alguns eruditos durante dois séculos.
+
+### Marx e Sade
+
+    140
+
+    Essa entrada do capital, no negócio sadeano, é marcada pela referência
+    constante, no texto, a um outro lugar além do convento e do castelo. É a
+    fábrica, então nascendo, que verdadeiramente pode transfigurar o convento e o
+    castelo, permitindo-lhes alcançar a dimensão industrial. E, com efeito, o texto
+    sadeano se empenha em mostrar a possibilidade da industrialização do gozo.
+
+    Ora, para industrializar o gozo, é necessário:
+
+    1) Um aporte de capital. Acabamos de falar a respeito, a propósito do castelo
+    de Silling e do banqueiro Durcet. Silling, assim como outra mansão, o castelo
+    da Sociedade dos Amigos do Crime, da história de Juliette, são empreendimentos
+    baseados na iniciativa de membros muito afortunados da alta nobreza ou da
+    grande burguesia. Trata-se, portanto, de um investimento que envolve modos de
+    gestão muito precisos e, por sinal, indicados já na introdução de Os cento e
+    vinte dias…:
+
+    A sociedade havia criado um fundo comum alternadamente administrado por cada um
+    de seus membros durante seis meses; mas os recursos desse fundo, devendo servir
+    apenas aos prazeres, eram imensos. Sua enorme fortuna permitia-lhes coisas
+    muito singulares a esse respeito, e o leitor não deve espantar-se quando lhe é
+    dito que anualmente eram destinados dois milhões exclusivamente aos prazeres da
+    boa mesa e da lubricidade.
+
+    2) Uma provisão de matérias-primas, vale dizer, corpos prontos para serem
+    reduzidos a órgãos para o gozo, em outras palavras, prontos para serem
+    des-organizados, desmembrados em órgãos, em condições de serem integrados
+    pedaço a pedaço à indústria do gozo.
+
+    3) Um pessoal de organização e intendência, além de capatazes, capazes de
+    explorar da melhor forma essa matéria-prima e fazer funcionar uma tal máquina.
+    Entre outras coisas, esse pessoal serve para cuidar das cadências, como aqui,
+    em Juliette: “Sob nossas bocas, as bocetas, os paus, os cus se sucediam tão
+    rapidamente quanto o desejo; por outro lado, mal os aparelhos que masturbávamos
+    haviam descarregado, outros surgiam” (Juliette, 5ª parte). Ou aqui, em Os cento
+    e vinte dias…: “É preciso que a coisa ande muito depressa; cada moça deve dar
+    vinte e cinco chicotadas, e no intervalo desses vinte e cinco golpes é que a
+    primeira chupa e a terceira caga.”
+
+    O modelo antecipado por Sade é claramente o da cadeia de montagem industrial.
+
+    Sessenta anos antes de Marx, Sade entendeu que a produtividade está diretamente
+    ligada ao fator tempo (O Capital, 1ª seção, 1º capítulo).
+
+    141
+
+    O que vemos começar a funcionar é uma manufatura de um tipo especial, na qual
+    os corpos são integrados em uma grande máquina de produção de gozo. A ironia de
+    Sade em relação aos templos smithianos (vale dizer, as empresas da primeira
+    revolução industrial), em que se realiza o maravilhoso plano secreto da
+    natureza, é feroz. Reconhecemos aí a atitude assassina do descendente de uma
+    velha família nobre que considera com desprezo as realizações de que tanto se
+    orgulha a burguesia conquistadora.
+
+    142
+
+    É notável que Sade, grande anunciador da Cidade perversa, tenha pensado que o
+    gozo podia industrializar-se, graças, entre outras coisas, à inserção de
+    algumas máquinas-ferramentas, antepassados dos atuais sextoys. Por exemplo,
+    máquinas masturbadoras ou chupadoras feitas de roldanas, molas e engrenagens,
+    que são engatadas no senhor e funcionam como substitutos de órgãos, de tal
+    maneira que, quando os agentes humanos estão presentes, é necessário que seja
+    visível apenas a parte do corpo que fornece o gesto útil ao gozo (a mão, o
+    pênis, a boca, o ânus):
+
+    Então Francaville retirou um tecido de cetim rosa que recobria o otomano… Oh!
+    Que assento se encontrava sob o tecido! […] [uma mulher podia ajoelhar-se],
+    suas mãos […] iam pousar no baixo ventre de dois homens que assim colocavam nas
+    mãos da mulher uma máquina monstruosa que era a única coisa que se via: o resto
+    do corpo, oculto por baixo de panos negros, não era visto. Uma nova mecânica
+    muito mais singular era operada sob o ventre da mulher […]. De toda essa
+    mecânica resultava que a mulher, sobre o sofá movido pelas molas adaptadas,
+    nele era a princípio molemente estendida sobre o ventre, penetrada por um
+    consolo, chupada por uma jovem, masturbando um pau com cada uma das mãos,
+    oferecendo o cu ao pau bem real que vinha sodomizá-la e alternadamente
+    chupando, conforme o gosto, um pau, uma boceta e mesmo um cu.164
+
+    143
+
+    Cabe notar que a sociedade-fábrica de produção/consumo do gozo de Sade é uma
+    sociedade sem restos, onde tudo pode ser explorado:
+
+    “Vamos, minha criança”, diz ele, “mãos à obra; a merda está pronta, eu a senti,
+    lembre-se de cagar aos poucos e sempre esperar que eu tenha devorado um pedaço
+    antes de expelir outro. Minha operação é longa, mas não a apresse. Um tapinha
+    nas nádegas servirá de aviso para expelir, mas que seja sempre aos poucos.”
+    Tendo-se então colocado o mais confortavelmente possível em relação ao objeto
+    de seu culto, ele cola sua boca e eu lhe entrego quase imediatamente um pedaço
+    de bosta do tamanho de um pequeno ovo. Ele o chupa, virando-o e revirando-o mil
+    vezes na boca, mastiga-o, saboreia-o e, ao fim de dois ou três minutos, vejo
+    claramente que o engole.165
+
+    Estamos lidando com um sistema perfeito, sem restos, já que os dejetos são
+    reciclados. E, por sinal, é exatamente onde os comentadores mais entusiásticos
+    de Sade, como Maurice Heine, não aguentam mais. Mas estão errados, pois é aí
+    que a sociedade-fábrica da produção/consumo encontra seu regime ideal, seu
+    regime ecológico perfeito, pela acoplagem da máquina-boca, para falar como
+    Deleuze, à máquina-cu.
+
+    144
+
+    Marx fez uma análise impecável do processo de produção. O capitalista não paga
+    ao proletário o produto de seu trabalho, mas apenas a soma necessária para a
+    reprodução de sua força de trabalho, de tal maneira que capta a diferença (a
+    mais-valia) que, com o tempo, permite a constituição do capital. Mas Marx não
+    se aventurou na análise do processo de consumo. Sade é o único que articulou a
+    produção (pelos proletários) e o consumo (pelo senhor). Em outras palavras, a
+    mais-valia extraída também é uma reserva de fundos que podem ser
+    incessantemente convertidos em gozos de toda natureza — o que Lacan muito
+    justificadamente chamaria, em seu seminário de 1968-1969 intitulado De um Outro
+    ao outro (livro XVI, Le Seuil, Paris, 2006), de “o mais-gozar”.166 Graças a
+    Sade, ficamos então sabendo algo essencial: o consumo é um gozo. Um gozo
+    proibido ao proletário produtor.
+
+    Marx e Sade
+
+    145
+
+    Se Marx tivesse lido Sade, não teria cometido um grave erro: não ter visto que
+    toda a economia também é uma enorme questão passional e pulsional. Se Marx
+    tivesse lido Sade, o mundo seria outro. Teríamos evitado a criação desses
+    monstros frios que foram as economias socialistas suspeitando de toda paixão,
+    exceto a paixão pelo chefe. Não teríamos tido essa divisão altamente nociva
+    entre Marx, por um lado, na economia dos bens, e Freud por outro, na economia
+    libidinal — cisão equivocada desde o início, que nenhum freudo-marxista, nem
+    mesmo da escola de Frankfurt, jamais foi capaz de resolver. Se Marx tivesse
+    lido Sade, poderíamos dispor de uma economia geral das paixões. O mundo poderia
+    ter sido reformado de outra maneira. Teríamos evitado a captação e o desvio dos
+    espíritos resistentes à teodiceia smithiana nas falsas alternativas ao
+    capitalismo representadas pelas economias socialistas, que só poderiam levar ao
+    mais lamentável dos fiascos.
+
+    146
+
+    Poderíamos responder que Marx não teve a menor necessidade de ler Sade, pois
+    desenvolvera um conceito que permite a análise do processo de consumo, o
+    “fetichismo da mercadoria”. Esse conceito é apresentado num curto texto
+    (algumas páginas) que constitui a quarta e última parte do primeiro capítulo do
+    livro I do Capital, intitulada “O caráter fetiche da mercadoria e seu segredo”.
+    E, de fato, ele permite entender por que, no regime capitalista, o homem encara
+    a mercadoria como o “selvagem” vê um ídolo: ela possui uma qualidade mágica, a
+    de poder ser trocada por qualquer outra mercadoria — e podemos ver aonde isso
+    conduz, ao fetichismo do dinheiro. Se a mercadoria é fetichizada, é por ocultar
+    aquilo que é na realidade, e que a “ciência” (marxista) enuncia assim: a
+    mercadoria é apenas o tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la,
+    ou seja, trabalho abstrato, e, portanto, remete apenas a relações sociais. Esse
+    trabalho é considerado abstrato porque, em oposição ao trabalho concreto, torna
+    abstrata toda qualidade sensível e todo valor de uso — e é precisamente isso
+    que leva a mercadoria a funcionar como fetiche.
+
+    [...]
+
+    Há os que pensam (os marxistas ortodoxos) que Marx tem razão de destacar o
+    domínio do trabalho abstrato sobre o trabalho concreto e os que consideram
+    (toda uma corrente crítica do marxismo ortodoxo) que Marx deplora e denuncia o
+    trabalho abstrato, daí extraindo uma consequência radical: é necessário pôr fim
+    ao trabalho assalariado.
+
+    [...]
+
+    O texto de Marx é, na verdade, fundamentalmente ambíguo. E todo o mérito dos
+    trabalhos críticos está em decidir no lugar de Marx e propor, contra as
+    habituais interpretações marxistas, uma leitura radical do “fetichismo da
+    mercadoria”. Entretanto, essas críticas, permanecendo escoradas em Marx, e
+    mesmo num Marx corrigido, deparam-se com um considerável obstáculo. Elas não
+    abordam uma questão decisiva. É verdade que a mercadoria é apenas tempo de
+    trabalho socialmente necessário para produzi-la, mas é precisamente a isso que
+    não se dá a menor importância quando se desfruta de um objeto. E mais:
+    desfrutar de um objeto também é subitamente abolir o trabalho socialmente
+    necessário para sua produção. Pois nesse caso está em ação uma outra lei. A lei
+    que, no consumidor, joga com a dinâmica que vai da pulsão a sua satisfação.
+    Ora, esta segunda lei é ignorada por Marx. Foi precisamente o que permitiu as
+    interpretações dos marxistas ortodoxos. Pois sendo o consumo sempre frio e
+    puramente utilitário em Marx, era fatal que o marxismo real engendrasse apenas
+    monstros frios gerados pela “ciência”, enunciando incansavelmente essa “lei” do
+    trabalho socialmente necessário e esquecendo a outra. Creio assim que é
+    necessário não só conduzir o texto de Marx na direção de uma crítica radical do
+    “fetichismo da mercadoria”, como ler nessas ausências o que permitiu o
+    desenvolvimento, com as trágicas consequências que sabemos, do erro e do horror
+    dos marxismos reais.
+
+[[!tag philosophy psychology sociology]]
diff --git a/books/philosophy/cidade-perversa/voto-prisao.jpg b/books/philosophy/cidade-perversa/voto-prisao.jpg
new file mode 100644
index 0000000000000000000000000000000000000000..ff2b25386012fa43095f1ad35361b71d4eb9e1a2
Binary files /dev/null and b/books/philosophy/cidade-perversa/voto-prisao.jpg differ