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From: Silvio Rhatto <rhatto@riseup.net>
Date: Sun, 7 Oct 2018 07:07:45 -0300
Subject: [PATCH] Updates books/philosophy/cidade-perversa

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 [[!meta title="A Cidade Perversa"]]
 
+## Sobre
+
+* Título: [A Cidade Perversa](https://outrapolitica.wordpress.com/2010/05/27/a-cidade-perversa-liberalismo-e-pornografia/).
+* Autor: [Dany-Robert Dufour](https://fr.wikipedia.org/wiki/Dany-Robert_Dufour).
+
+## Impressões
+
 * Uau! Como ressoa com as leituras de Elias, Marcuse e Hans Sachs.
 * Marquês de Sade versus Sady Baby?
 
+## Análise
+
+### O loop estranho da subjetivação
+
+O livro segue a linha da lógica cartesiana para chegar à linha dos loops estranhos, passando,
+usando, criticando e ultrapassando Lacan. Daí uma linha evolutiva do cartesianismo, para o lacanismo
+e em seguida para o hofstadterismo!
+
+Num primeiro momento, a leitura "estourou" minha cabeça -- para usar uma expressão do próprio autor
+quando explica uma transição de uma perversa-puritana do "modo neurótico" para o "modo perverso" de
+operação -- me deixou [acéfalo](https://en.wikipedia.org/wiki/Ac%C3%A9phale) -- e a referência à
+_Acéphale_ no livro talvez tenha passado desapercebida pelo autor e indique o próprio limite da
+sua obra, afora a constante referência a dualismos como physis/nomos e natureza/cultura (leis da natureza
+versus leis dos humanos) que poderiam ser dialogicamente articulados [morinianamente](/books/epistemology/metodo),
+pois ele esbarrou sem querer com a própria complexidade!
+
+Hofstadter utiliza os loops estranhos para mostrar como símbolos, "estruturas" ou "formas" ditas "irracionais"
+podem se enrolar, se emaranhar em configurações que apresentam padrões mais "inteligentes" -- ou seja,
+o racional surgindo a partir do irracional --, Dufour permanece apenas no nível lógico e aí me parece
+o limite de sua análise do liberalismo -- e por quê também não dizer do fascismo? -- como uma articulação
+puritano-perversa, pornográfica por trazer em cena o que era até então -- na Cidade dos Homens aspirando
+a ser Cidade de Deus -- obsceno.
+
+Utiliza o seguinte loop estranho de "enunciação e estrutura de subjetivação" a partir da sentença
+"eu falo a ti a propósito dele":
+
+       .--- Ele --.    (grande Sujeito)
+      /            \
+     /              \
+    |   .-> eu -.   /
+    `-->|       |->´   (sujeito s barrado)
+        \_ tu <-'
+
+Tal estrutura seria dada por conta da neotenia humana: uma resposta ao nosso desamparo neonatal e fundamental,
+do nosso nascimento prematuro:
+
+    220
+
+    Não se é nada disso por natureza porque a natureza é aquilo que a nós, homens,
+    mais falta. Com efeito, nascemos prematuros. Para os que não acreditam, eis
+    aqui algumas provas da prematuração do homem ao nascer: paredes cardíacas não
+    fechadas, imaturidade pós-natal do sistema nervoso piramidal, insuficiência dos
+    alvéolos pulmonares, caixa craniana não fechada (o que explica a moleira),
+    circunvoluções cerebrais mal desenvolvidas, ausência de polegar posterior
+    opositor, ausência de sistema piloso, ausência de dentição de leite ao nascer —
+    para não falar, nos homens, da ausência extremamente lamentável de osso peniano
+    ao nascer, o que poderá… tornar-se mais tarde uma experiência dolorosa. O ser
+    humano é, portanto, um ser de nascimento prematuro, sujeito a uma longuíssima
+    maternagem, incapaz de atingir seu desenvolvimento germinal completo e, no
+    entanto, capaz de se reproduzir e de transmitir seus caracteres de
+    juvenilidade, normalmente transitórios nos outros animais. Resulta disso que
+    esse estranho animal, inacabado, ao contrário dos outros animais, deve
+    completar-se em outro lugar que não a primeira natureza, ou seja, numa segunda
+    natureza, geralmente chamada cultura.
+
+    Não foi apenas a nossa época que se deu conta dessa fraqueza do homem. Tentei
+    demonstrar num trabalho anterior285 que existe uma grande narrativa,
+    percorrendo toda a civilização ocidental, baseada nesse inacabamento originário
+    do homem. Mais ainda, sabe-se hoje que toda a metafísica ocidental, seja ela
+    proveniente de Atenas ou de Jerusalém, fez do desamparo do homem ao nascer e na
+    primeira infância o ponto de partida da aventura humana. Acontece que essa
+    narrativa das origens baseia-se numa razão no real: desde o início do século
+    XX, os antropólogos falam, para se referir a essa prematuração, da neotenia do
+    homem.286
+
+    221
+
+    É, portanto, aí que tudo começa, com um ser incapaz e incompleto, incapaz de se
+    virar — vou chamá-lo aqui de o baixíssimo. Freud, por sua vez, propõe aqui o
+    termo da Hilflosigkeit humana, que remete ao desamparo originário do homem. É
+    digno de nota que esse conceito cintile ao longo de toda a extensa elaboração
+    freudiana. É bem verdade que não se trata de um conceito-estrela como o Édipo,
+    como o ego/id/superego ou como o recalque, mas é um conceito de fundo, sem o
+    qual os outros não teriam surgido. Ele teria sucessivas definições, cada vez
+    mais precisas, mas nunca seria abandonado. Indica que existe apenas uma solução
+    para a sobrevivência do homem: que ele supra essa falta de primeira natureza
+    com uma segunda natureza, a cultura. A cultura é, de certa maneira, o remédio
+    para a Hilflosigkeit humana. O único remédio possível. Aquele que permite ao
+    homem sair de seu estado marcado não só por esse inacabamento originário, mas
+    também por sua finitude no tempo (eu não sou para sempre; um dia, isto vai
+    acabar) e por seu fechamento no espaço (eu não estou em toda parte, mas aqui,
+    numa espécie de prisão domiciliar).
+
+    Haverá remediação se eu, ser tão mal acabado no tempo e no espaço, conseguir
+    supor um ser infinito em relação ao qual eu me coloque em posição de tudo
+    dever. Ora, supor esse ser é algo que eu posso, já que falo, e falar é fabular.
+    Nada, portanto, impede-me de inventar o que não existe, mas de que eu preciso
+    para viver. Pois se o suponho, a Ele, o Altíssimo, ou seja, o grande Sujeito,
+    poderei então me “sub-por” como seu sujeito — e é exatamente o que significa a
+    palavra “sujeito”: o subjectum em latim significa o “submisso”, ou seja, aquele
+    que é “posto sob”, colocado debaixo. É, portanto, necessário e suficiente que
+    eu conjeture um grande sujeito que supostamente tudo sabe, tudo pode e tudo vê
+    para que finalmente encontre o meu lugar, como sujeito desse ser. O grande
+    Sujeito atende então a essa definição de Aristóteles: “Ele é aquele pelo qual
+    tudo mais se ordena”, dizia ele na Metafísica.
+
+    Em outras palavras, a sobrevivência do homem, animal neotênico, por isso
+    carente de natureza, passa pela criação de seres de sobrenatureza, vale dizer,
+    seres de cultura que, apesar de não existirem, revelam-se dotados de uma
+    poderosa eficácia simbólica.
+
+    [...]
+
+    Muito bem. O único problema é que um círculo remetendo indefinidamente de s a S
+    e de S a s corre o risco de muito rapidamente tornar-se cansativo, pois
+    vicioso. Impossível, com efeito, sair dele, a menos que… A menos que a praxis
+    (que, vale lembrar, significa “ação” entre os gregos), resultando como tal de
+    uma decisão, venha a provocar o engatamento temporal, forçando as coisas. Não é
+    possível, com efeito, ficar dando voltas por toda uma eternidade como um
+    hamster na estrutura circular da subjetivação. Será necessário começar por uma
+    das pontas. O que implica romper a circularidade e reintroduzir uma
+    causalidade, que pode então ter início de duas maneiras diferentes:
+
+    — partindo de S, o grande Sujeito — será essa a escolha do crente. É uma
+    escolha frequente, pois tranquiliza o ser desamparado que é o homem, assim
+    reconfortado por se imaginar procedendo de algum deus;
+
+    — ou partindo de s — e será essa a escolha do ateu. É uma escolha mais rara,
+    pois recusa o consolo tão buscado e prolonga a inquietação. Por isso é que o
+    ateu com frequência range — ao mesmo tempo tentando dar uma forma aceitável a
+    esse rangido: o humor, por exemplo. Cioran — e eis aí alguém que rangia muito
+    —, que sabia conferir ao seu desespero essa forma polida que vem a ser o humor,
+    dizia: “Se existe alguém que tudo deve a Bach, é Deus.”288 Uma forma elegante
+    de afirmar que Deus, em Sua própria perfeição, foi criado pelos homens…
+    essencialmente para acalmá-los em suas angústias.  Poderíamos aqui
+    perguntar-nos se, em última análise, existem verdadeiros ateus. O que, de fato,
+    não é certo. Muito simplesmente porque a estrutura funcionará tanto melhor na
+    medida em que o sujeito ignorar que foi ele que inventou o grande Sujeito (ou
+    seu substituto). Em qualquer dos casos, ele deverá dar mostra de ignorância, e
+    é precisamente esse não saber que necessariamente fará dele um ser sujeito ao
+    inconsciente.289
+
+    224
+
+    É evidente, contudo, que essas duas maneiras de começar são igualmente ruins,
+    na medida em que pretendem impor uma decisão no lugar do que é rigorosamente
+    impossível de decidir. Em suma, o homem é um ser beckettiano: finito, mal
+    acabado e, sobretudo, sempre necessariamente começando mal. Em tais condições,
+    cabe supor que o remédio para o desamparo humano venha a ser bem pior que o
+    mal.
+
+    Esse remédio simbólico para o desamparo real do homem tem a ver com o que
+    Platão chamava de pharmakon: um remédio e um veneno.290 Em suma, o Outro, esse
+    grande Sujeito que não existe, é de grande ajuda… até que se torne extremamente
+    embaraçoso.
+
+    Por isso é que estamos constantemente matando nosso salvador. Entretanto, como
+    o sujeito é esperto, um belo dia tomou a frente, dizendo que havia morrido por
+    nós — e isso se chama cristianismo. Com isso, ficou difícil matá-lo… pois ele
+    já está morto — e, no entanto, Nietzsche bem que tentou, e sabemos o que lhe
+    custou.
+
+    225
+
+    Outro traço característico dessa estrutura estranha: ela permite afirmar que,
+    falando estritamente, não existe sujeito. Na verdade, existe apenas um
+    infrassujeito (que falta a ele próprio) e um sobressujeito. Os dois, o
+    baixíssimo e o Altíssimo, mantêm uma relação de implicação recíproca. Se
+    realmente se quisesse que houvesse um sujeito, seria necessário imaginá-lo como
+    o que resulta da interação dessas duas instâncias.
+
+    226
+
+    Essa estrutura s/S permite, ao que me parece, dar uma nova forma, indo além da
+    clínica individual, ao que Freud havia denominado, num texto tão breve quanto
+    decisivo, um de seus últimos, divisão subjetiva (a Spaltung).291 A divisão
+    subjetiva é o que faz de nós seres cindidos, incapazes de jamais nos
+    encontrarmos, pois no exato momento em que poderíamos nos encontrar,
+    perdemo-nos no Outro.  O psicanalista Alain Didier-Weill encontrou as palavras
+    mais simples e precisas para dizer essa cisão originária: “Assim que o sujeito
+    fala, significando-se numa fala que decide e distingue, uma parte dele,
+    insignificável pela fala, retira-se daquilo que foi significado e cai como que
+    velada.”292
+
+    [...]
+
+    229
+
+Três respostas básicas seriam possíveis: do neurótico, do perverso e do psicótico:
+     
+    Dessa estrutura circular em que o um (s) supõe o Outro (S) que “sub-põe” o um,
+    é possível sair de três maneiras: pela neurose, pela perversão ou pela psicose.
+    O que retoma em novas condições a intuição de Freud, que havia distinguido três
+    patologias fundamentais.
+
+1. Neurose: "dívida simbólica contraída em relação ao Outro", lembando que "sujeito"
+   vem de "sujeição", de se sujeitar:
+
+    Se a histeria constitui o protótipo da neurose, é porque o(a) histérico(a) é
+    aquele(a) que venera o Outro por lhe ter tudo dado e ao mesmo tempo o detesta
+    por tê-lo(a) posto na situação de tanto e tudo lhe dever. Ele/ela amará o Outro
+    detestando-o ou o detestará amando-o. É o lugar de um nó psíquico importante,
+    no qual constantemente se remotiva o conflito neurótico em todas as suas formas
+    possíveis. Por exemplo, esta, que faz as delícias do histérico: seduzir o Outro
+    — sob a figura de Deus, de um mestre, de um grande homem, etc. — ao mesmo tempo
+    escapando-lhe.
+
+2. Psicose: o caso-limite, "mais onerosa. Ela diz que se Deus é, então eu não sou":
+
+    Um combate que pode assumir duas formas opostas e complementares. Uma forma
+    paranoica, como tal perseguida: existe um Deus que está constantemente querendo
+    roubar meu ser, que me espiona e me persegue. E uma forma esquizofrênica e
+    triunfante: Deus, na verdade, sou eu. Nos dois casos, essa potência
+    manifesta-se como sobrenatural, o mais das vezes através de uma voz imperiosa
+    que ocupa o sujeito, no sentido de tomar posse dele, de se apoderar dele.
+
+3. Perversão:
+
+    Quanto à enunciação perversa, ela se esclarece nesse esquema. Ela permite
+    entender que o que está em jogo no grande circuito enunciativo (com o “Ele”)
+    vem a atuar no pequeno, de tal maneira que o “eu” ocupe, diante do “tu”, a
+    posição eminente que o “Ele” ocupa em relação a todo sujeito falante (“eu” e
+    “tu”). Em suma, o perverso coloca-se, diante de todo outro, na posição do
+    Outro. A definição poderá ser estranhada. Mas seria um equívoco, pois ela
+    encontra e confere sentido à maneira como Lacan definia o perverso: “O perverso
+    imagina ser o Outro para garantir seu gozo.”302 De fato, essa proposição só
+    pode ser realmente entendida mobilizando-se as teorias da enunciação baseadas
+    na análise da relação de lugar entre as três pessoas verbais: “eu” (o um), “tu”
+    (o outro) e “Ele” (o Outro). A perversão surge então como uma negação da grande
+    estrutura, compensada por um inchaço da pequena, como se essa estrutura
+    secundária pudesse e devesse suportar sozinha o que está em jogo na grande.
+    Poderíamos falar aqui de uma translação do que está em jogo na estrutura
+    principal para a estrutura secundária. O que, provavelmente, explica a
+    seriedade com que o perverso maquina suas encenações, às vezes deploráveis,
+    como se ele ocupasse diante de seu alter ego o lugar do Outro.
+
+Os modos de operação individuais variariam de acordo com a ênfase dos caminhos
+do circuito de enunciação subjetiva.
+
+O atual turbo-neoliberalismo é sustentado por um par operativo oscilatório
+neurótico-perverso.
+
+O caso limite da psicose não é tão útil pois raramente articula com sucesso a
+produção e o consumo capitalistas.
+
+Resumiria o livro com o trocadilho: "Sade, Smith e Lacan: um laço realmente estranho, mas não eterno".
+
+### O dilema do prisioneiro
+
+Aqui novamente esbarramos com um limite: altruísmo está situado no lugar da dívida com
+o outro (neurose, culpa) e não no abandono-de-si. Será mesmo que a única orientação
+("drive") dos seres é a autopreservação? [Marcuse parece mais apropriado neste ponto
+ao dar mais ênfase ao loop estranho das pulsões básicas Eros/Thanatos](/books/psychology/eros-civilization),
+que podem tanto ser entendidas como criação/destruição quanto tendências oscilantes de autopreservação
+ou reintegraçao/dissolução no ambiente.
+
+Se a opção for pela cisão physis/nomos, é preciso ter muito cuidado ao tomar
+por naturais as "leis" inventadas pelos humanos, especialmente no campo dos
+jogos. Pode-se entender a teoria dos jogos enquanto melhor estratégia possível
+sem questionar a valoração que está por trás dela, e portanto sua
+arbitráriedade.  Mas entendo que um liberalismo oriundo de uma cultura
+ocidental da cisão natureza/cultura, esta é a teoria que vem da cultura e quer
+se fazer natural, e este querer-fazer que a naturaliza no sentido de que a
+torna normal, a difunde e a impõe a tal ponto que parece imediata, se é que me entendem
+dada a dificuldade de formular a ideia.
+
+Seria então dupla mesquinharia acreditar tanto na naturalidade (no sentido de
+não ser arbitrário, não haver outra possibilidade) da teoria quando na sua
+aplicação (esta não é uma crítica ao autor, mas ao liberalismo)?
+
+Eis o trecho:
+
+    212
+
+    A intervenção de Lacan é muito importante, pois tira a filosofia moral da
+    esfera da psicologia — extremamente duvidosa, do ponto de vista científico, já
+    que pressupõe indivíduos a priori bons (como Rousseau) ou maus (como Hobbes) na
+    sua essência — para transformá-la num autêntico problema lógico.  E, por sinal,
+    se Lacan tivesse ido um pouco mais longe nesse terreno, teria podido valer-se
+    de suas ruminações sobre a lógica, aquelas mesmas que despertavam o seu
+    interesse nessa época, para colocá-la a serviço de sua reflexão sobre os
+    eternos impasses da ética e as possíveis superações que a reflexão
+    psicanalítica acaso permitiria. A coisa vai do “dilema dos prisioneiros”, que
+    ele havia comentado, já em 1945,270 a seu interesse pela cibernética, a partir
+    da década de 1950.271
+
+    Um caminho extremamente inovador é aberto aqui, já que enriquece a discussão
+    sobre a ética e a escolha das máximas (egoísta ou altruísta) com as
+    contribuições da teoria dos jogos.272
+
+    Kant abriu o caminho nesse terreno, ao considerar que a escolha das máximas
+    depende de um “você deve” que só pode ser incondicional, porque é lógico. Lacan
+    propôs a primeira articulação possível entre as duas máximas, desenvolvendo
+    seus aspectos lógicos. Vieram em seguida as discussões sobre a escolha das
+    máximas a partir de uma reflexão sobre o famoso dilema dos prisioneiros, tal
+    como expresso não na versão complexa de Lacan, mas numa versão simplificada,
+    que costuma ser enunciada da seguinte maneira:
+
+    Suponhamos dois prisioneiros, A e B, cúmplices de um crime, detidos em celas
+    separadas, sem possível comunicação. O juiz propõe a cada um deles a seguinte
+    barganha: denunciar o outro em troca da suspensão da pena. Haveria, assim, três
+    possibilidades:
+
+    1º Ambos se denunciam. Neste caso, cada um deles será condenado a cinco anos de
+    prisão.
+
+    2º Nenhum dos dois denuncia o outro. Neste caso, cada um será condenado a dois
+    anos.
+
+    3º Apenas um dos dois denuncia o outro. Neste caso, aquele que denuncia será
+    libertado e outro será condenado a dez anos.273
+
+    Cabe lembrar que esse problema foi enunciado pela primeira vez dessa forma, na
+    década de 1950, por pesquisadores da RAND Corporation.274 Este problema logo
+    provocou inúmeras discussões científicas, tendo sido estudado de forma
+    sistemática na década de 1980 por Robert Axelrod, especialista americano em
+    ciências políticas, que introduziu uma variante suplementar, o tempo: o jogo é
+    repetido, de tal maneira que os participantes guardam na memória os encontros
+    anteriores.275
+
+    É esse problema, precisamente, que vamos encontrar no cerne dos estudos que
+    permitem avaliar a pertinência da escolha da máxima egoísta nas e pelas
+    sociedades liberais. Ou seja, esta máxima derivada da reviravolta da metafísica
+    ocidental, que aos poucos se impôs, como tentamos demonstrar, de Pascal a Sade.
+    Se fosse necessária uma confirmação da pertinência da orientação de nossa
+    investigação, poderíamos encontrá-la no fato de que precisamente essa máxima
+    está em discussão há trinta anos num dos mais importantes think tanks
+    americanos.276
+
+    Farei aqui como o professor Mascomo, indo diretamente aos resultados. A solução
+    ideal (assim considerada quando beneficia o maior número possível de
+    indivíduos), alcançada depois de uma série de cálculos teóricos, experiências
+    práticas e simulações em computador, é obtida quando o jogador adota
+    inicialmente a estratégia altruísta (chamada tit for tat, ou seja,
+    “toma-lá-dá-cá”), o que significa propô-la ao outro, para ver, sabendo que, em
+    seguida, deverá estar preparado para um recuo imediato a uma máxima egoísta,
+    que, portanto, deve estar pronta, ainda que ele não a use, necessariamente, em
+    função do que o outro fará.
+
+    Aqui poderíamos nos perguntar se uma dedução transcendental extremamente
+    complexa seria necessária para chegar a essa posição e nela se manter na ação
+    prática. Creio que não. É possível chegar a essa posição instantaneamente. Em
+    outras palavras, essa dedução transcendental pode ser feita inconscientemente:
+    ela surge então como a posição espontânea que permite a regulação ideal da
+    relação com o outro, advertindo o sujeito, antes mesmo que ele pense a
+    respeito, de que não deve infligir nem se sujeitar.277
+
+    Assim é que a dedução transcendental, consciente ou não, revela que a máxima
+    altruísta deve ser completada por uma máxima egoísta — o que poderia ser dito
+    de outra forma: a minha máxima kantiana deve, portanto, ser completada por uma
+    máxima sadeana, suscetível de ser usada não como estratégia primeira, mas como
+    recurso.
+
+    Lacan, portanto, tem razão. O único problema é que ele nem desconfia em que
+    medida pode ter razão. Não vê em que medida sua solução permite entender os
+    problemas contemporâneos nas sociedades liberais, cada vez mais presas da
+    máxima sadeana.
+
+### Eros versus Perversão
+
+No que tange a Marcuse, concordo com o autor de que "Eros e Civilização" não
+assume que pode haver uma solução capitalista para o problema da mais-repressão
+e que os desejo pode ser infinitamente explorado via consumo.
+
+Mas no meu entender isso não invalida a possibilidade de um arranjo social nos
+moldes defendidos pro Marcuse.
+
+São duas formas possíveis de canalizar o desejo: uma aprisionadora, outra que
+liberta.
+
 ## Trechos
 
+Compilação parcial da seleção de trechos feita do livro todo... a ser completada um dia...
+
 ### Zanga
 
     58A zanga é provavelmente o primeiro jogo de cartas feito para levar a melhor
@@ -46,6 +415,7 @@
     entrada no capitalismo.
 
     104
+
     Nessa condição amoral reside certamente o segredo da irresistível penetração
     do capitalismo em muitos sistemas tradicionais em todo o mundo: o capitalismo
     pareceu libertador a muitos dos povos ainda presos a severas cláusulas
-- 
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