From 6d58db1efc7709a0322f10d4982db657f751eaa9 Mon Sep 17 00:00:00 2001
From: Silvio Rhatto <rhatto@riseup.net>
Date: Tue, 6 Dec 2016 18:52:53 -0200
Subject: [PATCH] Updates blog

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 books/vida/arte-de-viver.mdwn | 183 ++++++++++++++++++++++++++++++++++
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@@ -271,3 +271,186 @@ Trechos
     da ilusão.
 
     -- 84
+
+    Por meio ainda da técnica rudimentar da imagem, o indivíduo aprende a modelar
+    as suas atitudes existenciais segundo os retratos-robôs que dele traça a
+    psicologia moderna. Os seus tiques e manias pessoais se tornam os meios pelos
+    quais o poder o integra nos seus esquemas. A miséria da vida cotidiana atinge o
+    ápice ao pôr-se em cena na tela. Do mesmo modo que a passividade do consumidor
+    é uma passividade ativa, a passividade do espectador reside na sua capacidade
+    de assimilar papéis para depois desempenhá-los de acordo com as normas
+    oficiais. A repetição de imagens, os estereótipos oferecem uma série de modelos
+    na qual cada um deve escolher um papel. O espetáculo é um museu de imagens, um
+    armazém de sombras chinesas. É também um teatro experimental. O homem-
+    consumidor se deixa condicionar pelos estereótipos (lado passivo) segundo os
+    quais modela os seus diferentes comportamentos (lado ativo). Dissimular a
+    passividade, renovando as formas de participação espetacular e a variedade de
+    estereótipos, é aquilo a que hoje se
+
+    -- 85
+
+    Os papéis são desmanchados pela força da resistência da experiência vivida, e
+    assim a espontaneidade arrebenta o abscesso da inautencidade e da
+    pseudo-atividade.
+
+    -- 86
+
+    A habilidade em desempenhar e lidar com os papéis determina o lugar ocupado na
+    hierarquia do espetáculo. A decomposição do espetáculo prolifera os
+    estereótipos e os papéis, os quais justamente por isso caem no ridículo, e
+    roçam demasiado perto a sua negação, isto é, o gesto espontâneo (1,2)
+
+    A identificação é o caminho de entrada no papel. A necessidade de se
+    identificar com ele é mais importante para a estabilidade do poder que a
+    escolha dos modelos de identifiicação.  A identificação é um estado doentio,
+    mas só as identificações acidentais caem na categoria oficial chamada ”doença
+    mental”.O papel tem por função vampirizar a vontade de viver (3) O papel
+    representa a experiência vivida, porém ao mesmo tempo a reifica. Ele também
+    oferece consolo pela vida que ele empobrece, tornando-se assim um prazer
+    substituto e neurótico. É importante se libertar dos papéis recolocando-os no
+    domínio do lúdico(4)
+
+    [...]
+
+    O peso do inautêntico suscita uma reação violenta, quase biológica, do querer-viver.
+
+    -- 87
+
+    Os nossos esforços, aborrecimentos, fracassos, o absurdo dos nossos atos provêm
+    na maioria das vezes da imperiosa necessidade em que nos encontramos de
+    desempenhar papéis híbridos, papéis que parecem responder aos nossos
+    verdadeiros desejos, mas que na verdade são antagônicos a eles. “Queremos
+    viver”, dizia Pascal, “de acordo com a idéia dos outros, numa vida imaginária.
+    E por isso cultivamos aparências.
+
+    -- 88
+
+    Aonde a sociedade do espetáculo vai buscar os seus novos estereótipos? Ela os
+    encontra graças à injeção de criatividade que impede que alguns papéis se
+    conformem ao estereótipo decadente ( da mesma forma que a linguagem se renova
+    em contato com as formas populares). Graças, em outras palavras, ao elemento de
+    jogo que transforma os papéis.
+
+    -- 89
+
+    a identificação – o princípio do teste de Szondi (psiquiatra que representou
+    uma oposição à linha dura stalinista dentro da URSS) é bem conhecido. O
+    paciente é convidado a escolher, no meio de 48 fotos de doentes em estado de
+    crise paroxística, os rostos que lhe inspiram simpatia ou aversão.
+    Invariavelmente são escolhidos os indivíduos que apresentam uma pulsão que o
+    paciente aceita, ao passo que são rejeitados aqueles que expressam pulsões que
+    ele rejeita. A partir dos resultados o psquiatra constrói um perfil pusional do
+    qual se serve para liberar o paciente ou para dirigi-lo ao crematório
+    climatizado dos hispitais psiquiátricos.
+
+    Consideremos agora os imperativos da sociedade do consumo, uma sociedade na
+    qual a essência do homem é consumir: consumir Coca-cola, literatura, idéias,
+    sexo, arquitetura, TV, poder. Os bens de consumo, as ideologias, os
+    estereótipos, são as fotos de um formidável teste de Szondi no qual cada um de
+    nós é convidado a tomar parte, não por meio de uma simples escolha, mas por um
+    compromisso, por uma atividade prática.
+
+    -- 90
+
+    Pode-se considerar que as pesquisas de mercado, as técnicas de motivação, as
+    sondagens de opinião, os inquéritos sociológicos, o estruturalismo são parte
+    desse projeto, não importa o quão anárquicas e débeis possam ser ainda suas
+    contribuições. Faltam a coordenação e a racionalização? Os cibernéticos
+    tratarão disso, se lhes dermos a chance.
+
+    [...]
+
+    A doença mental não existe. É uma categoria cômoda para agrupar e afastar os
+    casos em que a identificação não ocorreu de forma apropriada. Aqueles que o
+    poder não pode governar nem matar, são rotulados de loucos. Aí se encontram os
+    extremistas e os megalomaníacos do papel. Encontram-se também os que riem dos
+    papéis ou os recusam.
+
+    -- 91
+
+    Papel, Reich, couraça.
+
+    -- 92
+
+    Quanto mais nos desligamos do papel, melhor manipulamos contra o adversário. Quanto
+    mais evitamos o peso das coisas, mais conquistamos leveza de movimentos.
+    Os amigos não ligam muito para as formas...Discutem abertamente, certos de que
+    não podem machucar um ao outro. Onde a comunicação real é buscada, os equívocos
+    não são um crime.
+
+    -- 94
+
+    Quanto mais se esgota aquilo que tem por função estiolar a vida cotidiana, mais
+    o poderio da vida vence o poder dos papéis. Esse é o início da inversão de
+    perspectiva. É nesse nível que a nova teoria revolucionária deve se concentrar
+    a fim de abrir a brecha que leva à superação. Dentro da era do cálculo e da
+    suspeita inaugurada pelo capitalismo e pelo stalinismo, opõe-se e constrói-se
+    uma fase clandestina de tática, a era do jogo.
+
+    O estado de degradação do espetáculo, as experiência individuais, as
+    manifestações coletivas de recusa fornecem o contexto para o desenvolvimento de
+    táticas práticas para lidar com os papéis. Coletivamente é possível suprimir os
+    papéis. A criatividade espontânea e o ambiente festivo que fluem livremente nos
+    momentos revolucionários oferecem exemplos numerosos disso. Quando a alegria
+    ocupa o coração do povo não existe líder ou encenação que dele se possa
+    apoderar.
+
+    -- 99
+
+    Segundo Hans Selye, o teórico do estresse, a síndrome geral da adaptação possui
+    três fases: a reação de alarme, a fase de resistência e a fase de esgotamento.
+    No plano do parecer, o homem soube lutar pela eternidade, mas , no plano da
+    vida autêntica, ainda se encontra na fase da adaptação animal: reação
+    espontânea na infância, consolidação na maturidade, esgotamento na velhice. E,
+    hoje em dia, quanto mais as pessoas buscam o plano do parecer, mais o cadáver
+    do caráter efêmero e incoerente do espetáculo demonstra que elas vivem como um
+    cão e morrem como um tufo de erva seca. Não pode estar longe o dia em que se
+    reconhecerá que a organização social criada pelo homem para transformar o mundo
+    segundo os seus desejos não serve mais a esse objetivo. E que ela não passa de
+    um sistema de proibição que impede a criação de uma forma superior de
+    organização e o uso de técnicas de libertação e realização individuais que o
+    homem forjou por meio da história da apropriação privada, da exploração do
+    homem pelo homem e do poder hierárquico.
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+    -- 102
+
+    Colocar a serviço do imutável a ideologia do progresso e da mudança cria um
+    paradoxo que nada, de agora em diante, pode esconder à consciência , nem
+    justificar diante dela. Neste universo em que a técnica e o conforto se
+    expandem, vemos que os seres se fecham em si mesmos, endurecem, vivem
+    mesquinhamente, morrem por coisas sem importância. É um pesadelo no qual nos
+    prometeram uma liberdade absoluta e nos deram um metro cúbico de autonomia
+    individual, rigorosamente controlada pelos vizinhos. Um espaço-tempo da
+    mesquinhez e do pensamento pequeno.
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+    -- 105
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+    Ninguém tem o direito de ignorar que a força do condicionamento o habitua a
+    sobreviver com um centésimo do seu potencial de viver.
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+    -- 107
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+    O revoltado sem outro horizonte além do muro das coações corre o risco de
+    quebrar a cabeça nele ou de defendê-lo um dia com uma teimosa estupidez. Já que
+    se apreender na perspectiva das coações é sempre olhar no sentido desejado pelo
+    poder, quer para recusá-lo, quer para aceitá-lo. Assim o homem se encontra no
+    fim da linha, coberto de podridão como diz Rosanov. Limitado por todos os
+    lados, ele resite a qualquer intrusão, e monta guarda sobre si mesmo,
+    zelosamente, sem perceber que se tornou estéril: que mantém vigílila sobre um
+    cemitério.
+
+    [...]
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+    Como as pessoas mais inclinadas aos acordos comprometedores sempre consideram
+    uma incomensurável glória permanecerem íntegras em um ou dois pontos
+    específicos!
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+    Nenhum laço é mais difícil de romper que aquele no qual o indivíduo se prende a
+    si próprio quando sua revolta se perde dessa forma. Quando ele coloca a sua
+    liberdade a serviço da não-liberdade, o aumento da força da não-liberdade que
+    resulta disso o escraviza. Ora, pode acontecer que nada se assemelhe tanto à
+    não-liberdade quanto o esforço em direção à liberdade, mas a não- liberdade tem
+    como particularidade que uma vez comprada ela perde todo o seu valor, mesmo que
+    seu preço seja tão alto quanto a liberdade.
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+    -- 114-115
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