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+[[!meta title="O processo civilizador"]]
+
+## Índice
+
+* Processo civiliza-DOR.
+* Memória, autocontrole, adestramento, custo da civilização para os indivíduos, vide introdução.
+
+### Kultur e Zivilization
+
+    O conceito de “civilização” refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível
+    da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos
+    científicos, às ideias religiosas e aos costumes.
+    
+    [...]
+    
+    Já no emprego que lhe é dado pelos alemães Zivilisation, significa algo de fato
+    útil, mas, apesar disso, apenas um valor de segunda classe, compreendendo
+    apenas a aparência externa de seres humanos, a superfície da existência humana.
+    A palavra pela qual os alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra
+    expressa-lhes o orgulho em suas próprias realizações e no próprio ser, é
+    Kultur.
+
+    [...]
+
+    O que se manifesta nesse conceito de Kultur, na antítese entre profundeza e
+    superficialidade, e em muitos conceitos correlatos é, acima de tudo, a
+    autoimagem do estrato intelectual de classe média.
+
+### Vanguarda
+
+    Conforme dito acima, o movimento literário da segunda metade do século XVIII
+    não tem caráter político, embora, no sentido o mais amplo possível, constitua
+    manifestação de um movimento social, uma transformação da sociedade. Para
+    sermos exatos, a burguesia como um todo nele ainda não encontrava expressão.
+    Ele começou sendo a efusão de uma espécie de vanguarda burguesa, o que
+    descrevemos aqui como intelligentsia de classe média: numerosos indivíduos na
+    mesma situação e de origens sociais semelhantes espalhados por todo o país,
+    pessoas que se compreendiam porque estavam na mesma situação. Só raramente
+    membros dessa vanguarda se reuniam em algum lugar como grupo durante um período
+    maior ou menor de tempo. Quase sempre viviam isolados ou sós formando uma elite
+    em relação ao povo, mas pessoas de segunda classe aos olhos da aristocracia
+    cortesã.
+
+    Repetidamente, encontramos nessas obras a ligação entre tal posição social e os
+    ideais nelas postulados: o amor à natureza e à liberdade, a exaltação
+    solitária, a rendição às emoções do coração, sem o freio da “razão fria”. No
+    Werther, cujo sucesso demonstra como esses sentimentos eram típicos de uma dada
+    geração, isto é dito de maneira bem clara e inequívoca.
+
+    [...]
+
+    E em 15 de março de 1772: “Rilho os dentes… Após o jantar na casa do conde,
+    andamos de um lado para outro no grande parque. Aproxima-se a hora social.
+    Penso, sabe Deus sobre nada.” Ele permanece ali, os nobres chegam. As mulheres
+    murmuram entre si, alguma coisa circula entre os homens. Finalmente, o conde,
+    um tanto embaraçado, pede-lhe que se retire. A nobreza sente-se insultada ao
+    ver um burguês entre seus membros.
+    
+    “‘Sabe’”, diz o conde, “‘acho que os convivas estão aborrecidos em vê-lo
+    aqui.’… Afastei-me discretamente da ilustre companhia e me dirigi a M., a fim
+    de observar o pôr do sol do alto da colina, enquanto lia no meu Homero o canto
+    que celebra como Ulisses foi hospitaleiramente recebido pelos excelentes
+    guardadores de porcos.”
+
+    Por um lado, superficialidade, cerimônia, conversas
+    formais; por outro, vida interior, profundidade de sentimento, absorção em
+    livros, desenvolvimento da personalidade individual. Temos o mesmo contraste
+    referido por Kant, na antítese entre Kultur e civilização, aplicado aqui a uma
+    situação social muito específica.
+
+    No Werther, Goethe mostra também com particular clareza as duas frentes entre
+    as quais vive a burguesia. “O que mais me irrita”, lemos na anotação de 24 de
+    dezembro de 1771, “é nossa odiosa situação burguesa. Para ser franco, sei tão
+    bem como qualquer outra pessoa como são necessárias as diferenças de classe,
+    quantas vantagens eu mesmo lhes devo. Apenas não deviam se levantar diretamente
+    como obstáculos no meu caminho.” Coisa alguma caracteriza melhor a consciência
+    de classe média do que essa declaração. As portas debaixo devem permanecer
+    fechadas. As que ficam acima têm que estar abertas. E como todas as classes
+    médias, esta estava aprisionada de uma maneira que lhe era peculiar: não podia
+    pensar em derrubar as paredes que bloqueavam a ascensão por medo de que as que
+    a separavam dos estratos mais baixos pudessem ceder ao ataque.
+
+    Todo o movimento foi de ascensão para a nobreza: o bisavô de Goethe fora
+    ferreiro,13 seu avô alfaiate e, em seguida, estalajadeiro, com uma clientela
+    cortesã, e maneiras cortesãs-burguesas. Já abastado, seu pai tornou-se
+    conselheiro imperial, burguês rico, de meios independentes, possuidor de
+    título. Sua mãe era filha de uma família patrícia de Frankfurt.
+
+    O pai de Schiller era cirurgião e, mais tarde, major, mal remunerado; mas seu
+    avô, seu bisavô e seu tataravô haviam sido padeiros. De origens sociais
+    semelhantes, ora mais próximas ora mais remotas, dos ofícios e da administração
+    de nível médio vieram Schubart, Bürger, Winkelmann, Herder, Kant, Friedrich
+    August Wolff, Fichte, e muitos outros membros do movimento.
+
+    [...]
+
+    De modo geral, permaneceram muito altas, segundo os padrões ocidentais, as
+    paredes entre a intelligentsia de classe média e a classe superior
+    aristocrática na Alemanha.
+
+    [...]
+
+    A burguesia comercial, que poderia ter servido como público para os escritores,
+    é relativamente subdesenvolvida na maioria dos Estados alemães no século XVIII.
+    A ascensão para a prosperidade apenas ensaia os primeiros passos nesse período.
+    Até certo ponto, por conseguinte, os escritores e intelectuais alemães como que
+    flutuam no ar. Mente e livros são seu refúgio e domínio, e as realizações na
+    erudição e na arte seu motivo de orgulho. Dificilmente existe para esta classe
+    oportunidade de ação política, de metas políticas. Para ela, o comércio e a
+    ordem econômica, em conformidade com a estrutura da vida que levam e da
+    sociedade onde se integram, são interesses marginais.
+    O comércio, as comunicações e as indústrias são relativamente subdesenvolvidos
+    e ainda necessitam, na maior parte, de proteção e promoção mediante uma
+    política mercantilista, e não de libertação de suas restrições. O que legitima
+    a seus próprios olhos a intelligentsia de classe média do século XVIII, o que
+    fornece os alicerces à sua autoimagem e orgulho, situa-se além da economia e da
+    política. Reside no que, exatamente por esta razão, é chamado de das rein
+    Geistige (o puramente espiritual) em livros, trabalho de erudição, religião,
+    arte, filosofia, no enriquecimento interno, na formação intelectual (Bildung)
+    do indivíduo, principalmente através de livros, na personalidade.
+
+    [...]
+
+    Uma descrição muito esclarecedora da diferença entre esta classe intelectual
+    alemã e sua contrapartida francesa é também encontrada nas conversas de Goethe
+    com Eckermann: Ampère chega a Weimar. (Goethe não o conhecia pessoalmente, mas
+    com frequência o elogiara para Eckermann) Para espanto de todo mundo,
+    descobre-se que o festejado Monsieur Ampère é “um alegre jovem na casa dos 20
+    anos”. Eckermann manifesta surpresa e Goethe responde (quinta-feira, 23 de maio
+    de 1827):
+
+        Não tem sido fácil para você em sua terra nativa, e nós no centro da
+        Alemanha tivemos que pagar muito caro pela pouca sabedoria que possuímos. Isto
+        porque, no fundo, levamos uma vida isolada, paupérrima! Pouquíssima cultura nos
+        chega do próprio povo e todos os nossos homens de talento estão dispersos pelo
+        país. Um está em Viena, outro em Berlim, um terceiro em Königsberg, o quarto em
+        Bonn ou Düsseldorf, todos separados entre si por 50 ou 100 milhas, de modo que
+        é uma raridade o contato pessoal ou uma troca pessoal de ideias. Sinto o que
+        isto significa quando homens como Alexander von Humboldt passam por aqui e
+        fazem com que meus estudos progridam mais num único dia do que se eu tivesse
+        viajado um ano inteiro em meu caminho solitário.
+
+        Mas agora imagine uma cidade como Paris, onde as mentes mais notáveis de todo o
+        reino estão reunidas num único lugar, e em seu intercâmbio, competição e
+        rivalidade diárias eles se ensinam e se estimulam a prosseguir, onde o melhor
+        de todas as esferas da natureza e da arte de toda a superfície da terra pode
+        ser visto em todas as ocasiões. Imagine essa metrópole onde cada ponta que se
+        transpõe e cada praça que se cruza evocam um grande passado. E em tudo isto não
+        pense na Paris de uma época monótona e embotada, mas na Paris do século XIX,
+        onde durante três gerações, graças a homens como Molière, Voltaire e Diderot,
+        essa riqueza de ideias foi posta em circulação como em nenhuma outra parte de
+        todo o globo, e compreenderá que uma boa mente como a de Ampère, tendo se
+        desenvolvido em meio a tal abundância, pode muito bem chegar a ser alguma coisa
+        no seu 24o ano de vida.
+
+    [...]
+
+    Na França, a conversa é um dos mais importantes meios de comunicação e, além
+    disso, há séculos é uma arte; na Alemanha, o meio de comunicação mais
+    importante é o livro, e é uma língua escrita unificada, e não uma falada, que
+    essa classe intelectual desenvolve. Na França, até os jovens vivem em um
+    ambiente de rica e estimulante intelectualidade; mas o jovem membro da classe
+    média alemã tem que subir a muito custo em relativa solidão e isolamento.
+
+### Civilização como máquina automática em constante reforma
+
+    No seu Ami des hommes, argumenta Mirabeau em certa altura que a superabundância
+    de dinheiro reduz a população, de modo que aumenta o consumo por indivíduo.
+    Acha que esse excesso de dinheiro, caso se torne grande demais, “expulsa a
+    indústria e as artes, lançando, desta maneira, os Estados na pobreza e no
+    despovoamento”. E continua: “À vista disto, notamos como o ciclo de barbárie a
+    decadência, passando pela civilização e a riqueza, poderia ser invertido por um
+    ministro alerta e hábil, e nova corda seria dada à máquina antes que ela
+    parasse.”28 Esta frase realmente sumaria tudo o que se tornaria característico,
+    em termos muito gerais, do ponto de vista fundamental dos fisiocratas: a
+    concepção de economia, população e, finalmente, costumes como um todo
+    inter-relacionado, desenvolvendo-se ciclicamente; e a tendência política
+    reformista que dirige finalmente este conhecimento aos governantes, a fim de
+    capacitá-los, pela compreensão dessas leis, a orientar os processos sociais de
+    uma maneira mais esclarecida e racional do que até então.
+    
+    [...]
+
+    A crítica de Mirabeau, nobre proprietário de terras, à riqueza, ao luxo, e a
+    todos os costumes vigentes dá uma coloração especial a suas ideias. A
+    verdadeira civilização, pensa, situa-se em um ciclo entre a barbárie e a falsa
+    civilização, “decadente”, gerada pela superabundância de dinheiro. A missão do
+    governo esclarecido é dirigir este automatismo, de modo que a sociedade possa
+    florescer em um curso médio entre a barbárie e a decadência. Aqui, toda a faixa
+    de problemas latentes em “civilização” já é discernível no momento da formação
+    do conceito. Já nessa fase ela está ligada à ideia de decadência ou “declínio”,
+    que reemerge repetidamente, em forma visível ou velada segundo o ritmo das
+    crises cíclicas. Mas podemos também ver claramente que este desejo de reforma
+    permanece sem exceção dentro do contexto do sistema social vigente, manipulado
+    de cima, e que não opõe, ao que critica nos costumes do tempo, uma imagem ou
+    conceito absolutamente novos, mas, em vez disso, parte da ordem existente,
+    desejando melhorá-la: através de medidas hábeis e esclarecidas tomadas pelo
+    governo, a “falsa civilização” mais uma vez se tornará boa e autêntica.
+
+    [...]
+
+    Nesses mesmos anos, a palavra civilisation surge pela primeira vez como um
+    conceito amplamente usado e mais ou menos preciso. Na primeira edição da
+    Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des
+    Européens dans les deux Indes (1770), do padre Raynal, a palavra não ocorre nem
+    uma única vez; na segunda (1774), ela é “usada frequentemente e sem a menor
+    variação de significado como termo indispensável e geralmente entendido”.30
+
+    No Système de la nature, de Holbach, publicado em 1770, não aparece a palavra
+    civilisation. Mas no seu Système sociale, editado em 1774, ela é usada com
+    frequência. Diz ele, por exemplo: “Nada há que oponha mais obstáculos no
+    caminho da felicidade pública, do progresso da razão humana, de toda a
+    civilização dos homens do que as guerras contínuas para as quais príncipes
+    estouvados são atraídos a cada momento.”31 Ou, em outro trecho: “A razão humana
+    não é ainda suficientemente exercitada; a civilização dos povos não se
+    completou ainda; obstáculos inumeráveis se opuseram até agora ao progresso do
+    conhecimento útil, cujo avanço só poderá contribuir para o aperfeiçoamento de
+    nosso governo, nossas leis, nossa educação, nossas instituições e nossa
+    moral.”32
+
+    O conceito subjacente a esse movimento esclarecido de reforma, socialmente
+    crítico, é sempre o mesmo: que o aprimoramento das instituições, da educação e
+    da lei será realizado pelo aumento dos conhecimentos. Isto não significa
+    “erudição” no sentido alemão do século XVIII, porquanto os que aqui se
+    expressam não são professores universitários, mas escritores, funcionários,
+    intelectuais, cidadãos refinados dos mais diversos tipos, unidos através do
+    medium da “boa sociedade”, os salons. O progresso será obtido, por conseguinte,
+    em primeiro lugar pela ilustração dos reis e governantes em conformidade com a
+    “razão” ou a “natureza”, o que vem a ser a mesma coisa, e em seguida pela
+    nomeação, para os principais cargos, de homens esclarecidos (isto é,
+    reformistas). Certo aspecto desse processo progressista total passou a ser
+    designado por um conceito fixo: civilisation. O que era visível na versão
+    individual que Mirabeau tinha do conceito, o que não fora ainda polido pela
+    sociedade, e que era característico de todos os movimentos de reforma, era
+    encontrado também aqui: uma meia afirmação e uma meia negação da ordem vigente.
+    A sociedade, deste ponto de vista, atingira uma fase particular na rota para a
+    civilização. Mas era insuficiente. Não podia ficar parada nesse ponto. O
+    processo continuava e devia ser levado adiante: “a civilização dos povos ainda
+    não se completou.” Duas ideias se fundem no conceito de civilização. Por um
+    lado, ela constitui um contraconceito geral a outro estágio da sociedade, a
+    barbárie. Este sentimento há muito permeava a sociedade de corte. Encontrara
+    sua expressão aristocrática de corte em termos como politesse e civilité.
+
+    Mas os povos não estão ainda suficientemente civilizados, dizem os homens do
+    movimento de reforma de corte/classe média. A civilização não é apenas um
+    estado, mas um processo que deve prosseguir. Este é o novo elemento manifesto
+    no termo civilisation. Ele absorve muito do que sempre fez a corte acreditar
+    ser — em comparação com os que vivem de maneira mais simples, mais incivilizada
+    ou mais bárbara — um tipo mais elevado de sociedade: a ideia de um padrão de
+    moral e costumes, isto é, tato social, consideração pelo próximo, e numerosos
+    complexos semelhantes. Nas mãos da classe média em ascensão, na boca dos
+    membros do movimento reformista, é ampliada a ideia sobre o que é necessário
+    para tornar civilizada uma sociedade. O processo de civilização do Estado, a
+    Constituição, a educação e, por conseguinte, os segmentos mais numerosos da
+    população, a eliminação de tudo o que era ainda bárbaro ou irracional nas
+    condições vigentes, fossem as penalidades legais, as restrições de classe à
+    burguesia ou as barreiras que impediam o desenvolvimento do comércio — este
+    processo civilizador devia seguir-se ao refinamento de maneiras e à pacificação
+    interna do país pelos reis.